Itacaré, BA – Reconhecida por suas belezas naturais, a cidade de Itacaré carrega uma contradição histórica que atravessa décadas. Embora administrada por partidos considerados progressistas, uma das principais ruas do centro ainda preserva um nome que faz referência direta à ditadura militar: a Rua 31 de Março.
O dia 31 de março de 1964 marcou o golpe militar que depôs o presidente João Goulart e instaurou a ditadura militar (1964-1985). O regime impôs censura, repressão e perseguições políticas, além da suspensão de direitos democráticos. Apesar de uma tentativa formal de mudar essa denominação para homenagear o ex-prefeito Doutor Edgar Alves dos Reis, combatente do regime autoritário, a alteração nunca foi efetivada.
Uma proposta que não saiu do papel
O impasse começou quando o cidadão José Antônio Dias apresentou ao então presidente da Câmara Municipal, Edson Arantes Santos Mendes, conhecido como Nego de Saronga, a proposta de substituir o nome do logradouro por “Rua Doutor Edgar Alves dos Reis”.
A iniciativa foi motivada pelo histórico de Edgar na luta contra a ditadura. Militante de esquerda, ele foi preso em Ibiúna durante a mobilização estudantil contra o regime, destacando-se pela defesa das liberdades democráticas. Com a redemocratização, tornou-se o primeiro prefeito eleito de Itacaré nesse novo contexto, criando a primeira Secretaria Municipal de Reforma Agrária do Brasil e elaborando o primeiro Plano Diretor de Desenvolvimento do Município.
Apesar da aprovação legislativa e da sanção pelo então prefeito Jarbas Barros (PSB), a lei nunca foi cumprida na prática. Um dos principais entraves para sua implementação está na falta de transparência sobre os documentos oficiais. Sem acesso fácil às leis municipais, moradores e ativistas encontram dificuldades para cobrar a efetivação da medida.
Governos de esquerda e a contradição histórica
Nos últimos 20 anos, a prefeitura de Itacaré foi liderada por representantes da esquerda ou centro-esquerda:
- 2009 a 2012: Antônio de Anízio (PT);
- 2013 a 2016: Jarbas Barbosa Barros (PSB);
- 2017 a 2024: Antônio de Anízio (PT, reeleito);
- 2025 – atualidade: Nego de Saronga (PT).
Mesmo com gestões progressistas, a rua que homenageia a ditadura militar segue intacta, em contradição com os discursos de defesa da democracia. O atual prefeito, Nego de Saronga, que presidia a Câmara quando a mudança foi aprovada, ainda não efetivou a alteração.
O legado de Doutor Edgar Alves dos Reis
A proposta de renomear a rua carrega profundo simbolismo. Edgar Alves dos Reis foi uma figura central na luta contra o regime militar. Preso em 1968 durante o 30º Congresso da UNE, ele foi detido também em Itacaré por se manifestar contra o regime.
Com o retorno da democracia, Edgar assumiu papel de destaque como prefeito, implementando políticas inovadoras:
- Criação da Primeira Secretaria Municipal de Reforma Agrária do Brasil;
- Elaboração do Primeiro Plano Diretor de Desenvolvimento do Município;
- Aprovação da Lei Orgânica Municipal;
- Implementação do orçamento participativo e maior transparência na gestão pública;
- Investimento na infraestrutura urbana e educação, dobrando o número de salas de aula;
- Valorização dos servidores municipais com a implementação do piso salarial;
- Obras estruturantes como estradas rurais, hospital e construção do Bairro da Pituba.
Renomear a rua em sua homenagem é um reconhecimento de seu impacto e compromisso com a democracia.
A contradição permanece
Apesar das sucessivas gestões progressistas, a Rua 31 de Março continua a homenagear um período de repressão e censura. Essa permanência expõe as dificuldades do Brasil em superar resquícios do regime militar.
Em tempos de ascensão do autoritarismo global, revisar e corrigir homenagens a períodos de opressão é essencial. A troca do nome da rua representa não apenas um gesto simbólico, mas um compromisso real com a justiça histórica e os valores democráticos.
Por Danilo Reis, Economista e filho de Edgar Alves dos Reis.