ILHÉUS 24H :: Porque a notícia não para. Porque a notícia não para

PALAVRA “ATÍPICO” ESCANCARA ARROGÂNCIA DO FUTEBOL BRASILEIRO

VITOR SÉRGIO RODRIGUES/ ESPORTE INTERATIVO
extraAlemanha fez vergonha na Eurocopa de 2000 (lanterna de um grupo com Portugal, Romênia e Inglaterra) e na Eurocopa de 2004 (eliminada na primeira fase por República Tcheca e Holanda). No meio dessas duas competições, foi à decisão da Copa do Mundo de 2002, com um time bem limitado (palavras do próprio treinador Rudi Voller), que chegou até lá baseado em atuações absurdas de Oliver Kahn. Olhando todo o cenário, os dirigentes alemães pararam, refletiram e tiveram a humildade de reconhecer: o futebol deles estava doente.
A partir daí, uma total reconstrução do futebol alemão se iniciou. Mais de 300 centros de formação de jogadores foram espalhados por todo o país, buscando revelar jogadores com um perfil diferente dos que estavam sendo produzidos. Capacitaram os profissionais que iriam formar esses garotos. Deixaram de lado o aspecto físico como determinante para selecionar um garoto, passando a valer o talento. Ajudaram (e obrigaram) a todos os times da Primeira e da Segunda Divisões a investir na base, com o mesmo método de trabalho da seleção.
Enquanto o Brasil era pentacampeão do mundo, com uma seleção repleta de craques, contra uma Alemanha repleta de jogadores medianos (ainda mais sem Ballack na final) o futebol alemão começava uma revolução para, no médio prazo, conseguir competir novamente. Não só com a seleção brasileira, mas também com a elite europeia, que na ocasião parecia ter deixado eles para trás. A humildade alemã foi tamanha que eles admitiram não ter condições de ganhar a Copa do Mundo de 2006, disputada em casa, e seguiram com o trabalho planejado.
Corta para 12 anos depois, Mineirão, Copa do Mundo do Brasil. A humildade alemã virou planejamento, que virou evolução, que virou execução perfeita e resultou na maior derrota da seleção brasileira em 100 anos de história. Mais humilhante que o 7 a 1 mostrado no placar é saber (antes mesmo de ser confirmado por alguns jogadores) que a Alemanha tirou o pé após fazer 5 a 0 em menos de meia-hora. Mas a palavra mais ouvida da boca dos brasileiros demonstrou bem que a humildade praticada pela Alemanha não tem muito espaço por aqui: “atípico”.

O discurso de Felipão, Daniel Alves e outros jogadores deixaram a clara impressão de que usaram “atípico” como se fosse algo casual, um acidente. Aponta até para uma arrogância característica da forma com que a maioria dos brasileiros enxergam futebol. E, evidentemente, não foi o que aconteceu. O 7 a 1 é consequência do atraso do Brasil. Por mais que a Alemanha tenha sido supereficiente até fazer o 5 a 0 (foram apenas oito finalizações), é preciso encarar de frente que o Brasil tem que revolucionar o seu futebol como a Alemanha fez no início da década passada. Haverá coragem para isso ou a soberba vigente vai continuar prevalecendo?
Nos últimos anos o futebol brasileiro estava sendo avisado de que precisa se reinventar. Dois clubes brasileiros foram eliminados por africanos no Mundial de Clubes. O Santos foi atropelado pelo Barcelona duas vezes (uma delas valendo o título mundial no Japão). Desde 2007 um brasileiro não disputa, de verdade, o título de melhor do mundo. Mas ao analisar este cenário, frases do tipo “quem é pentacampeão do mundo é o Brasil, eles que precisam aprender com a gente!”, repetidas aos montes pelos dirigentes, técnicos e jogadores brasileiros. Ninguém com humildade para meter o dedo na ferida.
Fica claro que o futebol brasileiro continua nascendo por geração espontânea, apenas “jogando bola”, sem entender como está sendo praticado o futebol. De quais características são exigidas dos jogadores top atualmente. Que jogador do Brasil pode fazer o papel que Toni Kroos faz na Alemanha? Hernanes é o que mais se aproxima, mas está muito, muito, muito longe. A esperança do futebol brasileiro era a (excepcional) individualidade de um jogador de 22 anos. Isso é muito descolado do jogo que se pratica nos centro mais desenvolvidos do futebol mundial.
A soberba do futebol brasileiro é tanta que até ontem, sempre que se falava na “revolução do futebol alemão” muitos argumentavam, em tom jocoso ou irônico, que esta Alemanha não ganhou nada. É verdade. Até aqui, desde 2008, a Alemanha fraquejou na hora de decidir. E nem por isso mudou o modelo que sabiam que era o certo e que uma hora dará resultados. É mais uma diferença clara da forma que o alemão vê o futebol hoje e a forma como o brasileiro médio encara o futebol historicamente. A seleção brasileira queria ganhar de qualquer jeito. A seleção alemã quer ganhar do jeito certo.
Evidentemente que a atual comissão técnica da seleção brasileira tem culpa neste desastre. E não foi escalar Bernard contra a Alemanha. Eu achava que diante do quadro, era melhor ter entrado assim (trocaria só Bernard por William), logicamente sem largar o meio-campo à mercê da categoria alemã. O problema é muito maior do que isso.
Reparem que a Argélia tinha duas formas definidas e bem treinadas de jogar. Quem viu os argelinos jogarem contra a Bélgica e depois contra a Coréia do Sul de forma totalmente diferente, percebe isso. Justamente por ter variações a Argélia conseguiu levar a Alemanha até a prorrogação. E teve chance de ganhar no tempo normal. O Brasil de Felipão só tinha uma forma de atuar: com intensidade, marcando pressão, com os volantes se projetando, na bola longa, rezando para fazer um gol cedo. Só havia isso. Foi visto por 45 minutos contra a Colômbia e em parte do segundo tempo contra Camarões eliminado. Apenas. Não tinha nenhuma alternativa. Não havia uma variação possível.
Várias outras coisas podem ser levantadas: treinar mais e melhor, uma concentração que não permite treinos secretos, o técnico ter perdido a (única) meia-hora de treino com um time alternativo para “enganar” o treinador alemão (como se isso fosse fazer a diferença), a ausência de Neymar e Thiago Silva da partida, o equilíbrio emocional da equipe, o time não estar preparado para levar um gol, entre outras coisas. Mas o buraco é muito mais embaixo, é de formação, é estrutural, é de conceito. A prova é que a maior polêmica da convocação de Felipão foi a quarta opção para a zaga, que “deveria ter sido” Miranda em vez de Henrique. A escalação era essa aí. Nenhum jogador que ficou fora da lista iria mudar o cenário drasticamente.
Só como exemplo do que é formar jogadores de forma lógica, pensada e coordenada, a Alemanha está no Brasil sem o seu melhor jogador na última temporada. Marco Reus. Não tem sua melhor opção para camisa 9: Mario Gomez. Também sem o seu único lateral-esquerdo: Schmelzer. E sem três jogadores importantes de meio-campo: Gundogan e os irmãos Bender. Todos eles ficaram fora por lesões. Isso acontece porque há uma fábrica coordenada de jogadores. O maior exemplo é que seis jogadores campeões europeus sub-21 em 2009 foram titulares ontem: Neuer, Howedes, Boateng, Kehdira, Hummels e Ozil. Schmelzer, se não tivesse se machucado, também estaria. Produção em série.
Nas 24 horas seguintes ao vexame se falou muito em contratar um técnico estrangeiro (algo que lá atrás foi refutado por José Maria Marin simplesmente “porque o Brasil foi pentacampeão do mundo sem precisar de técnico de outra nacionalidade…”). Mas trazer Guardiola, Sampaoli ou Klopp e descarregar na seleção brasileira não vai resolver as coisas por mágica. Se não houver uma mudança estrutural, de formação e da maneira de enxergar futebol, não vai resolver. Centros de treinamento da CBF, com um política uniforme de formação, em uma esquema definido e reproduzido em todas as categorias. É começar agora para colher os frutos em oito anos.
A goleada por 7 a 1 é atípica numericamente, mas não é um acidente, um acaso, uma aberração. E o Brasil deveria até “agradecer” ele ter acontecido, pois a maior vergonha da história da seleção brasileira pode provocar a percepção de que é preciso uma revolução. Pois se ontem tivesse sido 2 a 0 com a Alemanha dominando completamente a partida, a cegueira de que “o Brasil é o Brasil e não precisa aprender nada com ninguém” iria continuar. O desanimador é que mesmo com o 7 a 1 tem gente pensando assim…