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O VALOR DAS COISAS

GUSTAVO FELICÍSSIMO

Gustavo é escritor e editor da Mondrongo Livros.
Gustavo é escritor e editor da Mondrongo Livros.

Diz um ditado antigo que para toda regra existe exceção. Outro diz: A quem tem, dá-se. E já que o texto enveredou-se – por sua conta e risco – por essa seara, eis aqui outro fruto venturoso da sabedoria popular: quem narrou muitas coisas, muitas ainda há de narrar. É nesta última que me fio para escrever essa crônica que queria ser conto e que por muito pouco, graças ao pitaco decisivo do poeta e amigo Carlos Verçosa, não o foi.

Antes, se me permite o leitor, preciso concordar com o Oscar Wilde quando afirma em uma de suas obras que nada é mais equivocado que a ideia de que escritores vivem de fantasia, de que eles, sem cessar, inventam e reinventam acontecimentos que extraem de inexaurível fonte. Pensar assim seguramente é impreciso, pois é na vida ordinária que todo escritor vai buscar a matéria prima para as suas histórias, como no caso ocorrido com Dona Jacinta, que me contou pessoalmente o episódio que passo a narrar com total fidelidade mesmo aos fatos inventados, ou seja, tal qual chegou aos meus ouvidos, sem tirar nem por uma única vírgula fora do lugar.

É sabido que não sou nenhum tabelião, mas posso afirmar que tudo na presente história é digno de confiança e fé. O fato aconteceu em Salvador, e muito embora não tivesse um algoz, teve uma vítima, ou quase isso, a humilde Dona Jacinta, diarista que trabalha nas casas de Sarah e Mariah, amigas inseparáveis, que compartilham de tudo: segredos, sonhos, devaneios, a letra “h” no nome, inclusive a empregada.

Contou-me ela que fazia a faxina semanal na casa de Mariah, uma senhora espanhola para quem trabalha há anos. E que, tendo necessidade a patroa de sair às pressas de casa para encontrar uma amiga no shopping center, deixara sobre a mesa da sala de jantar o valor equivalente aos seus prestimosos serviços. Certa, porém, que ao retornar encontraria tudo como sempre: um brilho só.

Terminado o trabalho, Dona Jacinta, que demorara um pouco mais naquele dia para dar conta do serviço, percebera que passara um tantinho da hora de começar a preparar a refeição do marido e dos filhos. Chegando à sua casa, nova jornada. Agora era a família que precisava de um pouco de atenção. E tudo recomeçaria do mesmo modo no dia seguinte, não fosse um fato inusitado.

Por volta das seis horas da manhã de um dia chuvoso, está Dona Jacinta, como de costume, em um ônibus lotado, daqueles em que as pessoas se espremem em busca de uma posição minimamente confortável, com homens roçando-lhe a bunda e disfarçando cinicamente, como se ela não fosse capaz de perceber a sacanagem trazendo-lhe a sensação inequívoca de que a exploração diária estabelecera-se mal começara o novo dia.

Antes de sair de casa perguntara ao marido se ele tinha algum dinheiro trocado, pois para pagar o ônibus possuía em mãos apenas a nota inteira que a patroa havia utilizado para lhe pagar pelos serviços do dia anterior. Com a resposta negativa, virou nos calcanhares e disse para si: “o cobrador que se vire”. Deixar de ir à casa de Sarah, patroa tão boa e para quem trabalhava há tantos anos, é que não ia, sobretudo por um motivo tão banal.

Chegando à catraca retira de um dos bolsos da calça surrada aquela nota e estende-a para o cobrador com a intenção de pagar a sua passagem. Abre, em seguida, as mãos como quem reclama o troco. O cobrador franze as sobrancelhas e a devolve, dizendo não poder aceita-la por se tratar de moeda estrangeira. Dona Jacinta, espantada, observa demoradamente a nota e percebe não se tratar de cinquenta reais, mas de cinquenta euros. E exclama: “Euros”! Foi o suficiente para a curiosidade alheia. Ela contou, antes de qualquer olhar desconfiado, que a havia recebido da patroa, uma espanhola que, muito provavelmente, equivocara-se. Uns diziam: “Que mulher sortuda”. Houve de tudo: quem aconselhara a fingir que sequer percebera o equívoco, e até quem se propusera ali mesmo a trocar a nota por reais, mas com a devida depreciação cambial.

Dona Jacinta não deu ouvido a quem quer que fosse, e como era conhecida do cobrador pelo fato de estar ali todos os dias, chovendo ou fazendo sol, há tantos anos, pediu-lhe que a deixasse descer no ponto costumeiro, penhorando a sua palavra como garantia de que no dia seguinte pagaria a passagem, no que foi atendida prontamente.

Ao chegar à casa de Sarah soube que Mariah havia ligado, dando falta dos cinquenta euros quando ainda no shopping, e antes que lhe fosse perguntado qualquer coisa antecipou-se e contou à patroa a respeito de todo o ocorrido com minúcia de detalhes. Foi o suficiente para ambas darem muitas risadas da situação.

Após relatar-me essa história, muito provavelmente para ganhar a minha simpatia, pois era aquela a primeira vez que viera trabalhar em minha casa, Dona Jacinta, em sua máxima simplicidade, surpreende-me com uma sentença que a partir de agora coloco também na conta da sabedoria popular. Disse-me ela finalizando o seu relato: “sabe como é o dinheiro, ele faz com que as pessoas conheçam o preço de tudo, mas não permite que compreendam o valor de coisa alguma”.