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A TRAGÉDIA EM MARIANA E O DIREITO PENAL DA EFICIÊNCIA

POR:  GAMIL FÖPPEL EL HIRECHE E PEDRO RAVEL FREITAS SANTOS

O caso do rompimento da barragem em Mariana, Minas Gerais, repercutiu e causou grande clamor social. Certamente, o maior desastre ambiental da história do País merece a atenção e o cuidado de toda sociedade, mas é preciso ter cautela, para que o maior sinistro já noticiado não provoque, indiretamente, uma das maiores aberrações jurídicas já vistas no direito penal tupiniquim, tarefa difícil, em tempos de jatos lavados. Saliente-se que, por óbvio, se discute o caso penal em tese. 

A Polícia Civil de Minas Gerais pediu na terça-feira passada a prisão preventiva de seis funcionários da Samarco, dentre os quais, o Presidente Licenciado da mineradora. Após a conclusão de um dos inquéritos que investigam os acontecimentos de novembro de 2015, constatou-se, equivocadamente, com as devidas e necessárias licenças à Polícia de Minas Gerais, pelo cometimento de homicídio qualificado com dolo eventual. Além disso, foram imputadas outras figuras típicas, a saber, inundação e poluição de água potável. Trata-se, a nosso entender, de manifestação cabal do eficientismo no direito penal.  Frise-se que não se exclui a possibilidade de responsabilidade penal. Porém, a reprimenda criminal deve ser compatível com o quanto previsto no ordenamento jurídico pátrio. Ao fim e ao cabo, não se pode escolher o pior tipo penal, apenas e tão-somente por estar-se diante da pior tragédia ambiental já noticiada em terra brasilis.   

Imputar a prática de homicídio qualificado é desprezar a dogmática penal. Ora, descabida, absurda e inconcebível a tese de que existira no caso Mariana, dolo eventual. Impossível confundir dolo eventual com homicídio culposo. Nesse sentido, são palavras de Luiz Regis Prado: 

“Existe um denominador comum entre o dolo eventual e a culpa consciente: a previsão do resultado ilícito. É  certo, todavia, que no dolo eventual o agente presta anuência, concorda com o advento do resultado, preferindo arriscar-se a produzi-lo a renunciar à ação. Ao contrário, na culpa consciente, o agente afasta ou repele, embora inconsideradamente, a hipótese de superveniência do evento, e empreende a ação na esperança de que esse evento não venha a ocorrer – prevê o resultado como possível, mas não o aceita, nem o consente.”[1]

No caso em tela, na pior das hipóteses, se crime houve, incorreram os investigados no crime de homicídio culposo. A diferença entre dolo eventual e culpa pode ser percebida através de um questionamento: “Os indiciados aceitaram as mortes?” Se sim, estaríamos diante de homicídio doloso, o chamado dolo eventual. Observe-se, agora, outro questionamento: “A tragédia ocorreu devido a uma falta de cuidado, mas as mortes não eram desejadas?” Se sim, patente a modalidade culposa, caracterizada, justamente, pela ausência de um dever objetivo de cuidado.  

O dolo eventual possui como nota distintiva a previsibilidade do resultado e a assunção do risco. É dizer, o agente acometido por dolo eventual aceita o possível resultado ruinoso. No que tange à culpa consciente, o resultado também é previsível, porém, o agente não deseja o resultado e crê, verdadeiramente, que tal mal pode ser evitado. Importante a observação de Cezar Roberto Bitencourt: 

“A consciência e a vontade, que representam a essência do dolo direto, como seus elementos constitutivos, também devem estar presentes no dolo eventual. Para que este se configure é insuficiente a mera ciência da probabilidade do resultado ou a atuação consciente da possibilidade concreta da produção desse resultado, como sustentam os defensores da teoria da probabilidade. É indispensável uma determinada relação de vontade entre o resultado e o agente e é exatamente esse elemento volitivo que distingue o dolo da culpa.” [2] 

Mas se a diferença é gritante, qual a razão do indiciamento por homicídio qualificado? Certamente, a Polícia Civil conhece a lei. Por óbvio, as agencias de controle têm bem definidas as diferenças entre dolo eventual e culpa consciente.  Mas, indiciar os investigados pela prática de homicídio culposo, possivelmente, não traria à sociedade a sensação de “justiça” diante da amplitude do acidente. E vivem-se tempos em que as concepções pessoais de justiça estão a se sobrepor a qualquer laivo de segurança jurídica.  

Pois bem. 

Se crime existiu em Minas Gerais, na pior das hipóteses, foi o de homicídio culposo. A leitura do artigo 121,§3° do Código Penal é, no entanto, desalentadora para os eficientistas de plantão. A pena prevista para o homicídio culposo varia entre um a três anos de detenção, o que poderia ser considerado como proteção insuficiente aos bens jurídicos, o que é vedado, a partir de critérios da proporcionalidade (Untermassverbote, cf. HC 102.087/MG).  

Como explicar à sociedade tal reprimenda? Qual será a reação coletiva após tragédia de tal magnitude? Ora, faz-se necessário responder à altura, numa ótica retribucionista. E para tanto, tenta-se imputar crime que não existiu. Enquadra-se, a fórceps, o delito de homicídio qualificado (dolo eventual).  

A dogmática é rasgada para atender à expectativa social, o clamor das pessoas que buscam respostas imediatas após os danos ambientais e humanos verificados no Estado de Minas Gerais. Nisso reside a busca pelo eficientismo penal, aqui identificado e criticado. Reprovado, pois, cuida-se de violação à legalidade estrita, aos ditames do Código Penal. Importa salientar que os autores do texto não são abolicionistas, tampouco acreditam na desnecessidade do direito penal. Trata-se, contudo, de respeitar à dogmática, que cumpre a função de garantir ao réu direitos fundamentais.  

É notória a pequenez da pena de homicídio culposo. A sensação de impotência se amplia quando se está diante de situações como a em comento. Ora, tantas pessoas morreram, tiveram suas vidas ceifadas e os responsáveis serão punidos com pena tão curta? É preciso cumprir a lei. E ao Estado não cabe um papel parcial ou passional. O Estado deve efetivar a pena correta, dentro do previsto pelo Legislador.  

Fica nítido, portanto, o abismo entre o homicídio culposo e o doloso, mormente em relação à disparidade das penas. Se o homicídio culposo varia entre 01 a 03 anos, o homicídio qualificado tem reprimenda entre 12 a 30 anos de reclusão. Faz-se necessária figura intermediária, que puna crimes culposos de maior relevância, principalmente quando saltar aos olhos a culpa grosseira, plenamente evitável, sem que com isso se faça qualquer juízo de valor do caso concreto.  

Essa figura entre o homicídio culposo e o dolo eventual é prevista no Projeto do Novo Código Penal: chama-se culpa temerária / culpa gravíssima. Trata-se de modalidade própria para casos, em que por evidente não existe a intenção (consciência e vontade), mas que se diferencia pela ausência de dever objetivo de cuidado que ultrapassa a mera imprudência, negligência ou imperícia. Assim, prevê o artigo 121, §5° do Projeto do Novo Código Pena[3]l: 

Art. 121. 

“§ 5° Se as circunstâncias do fato demonstrarem que o agente não quis o resultado morte, nem assumiu o risco de produzi-lo, mas agiu com excepcional temeridade, a pena será de quatro a oito anos de prisão.” 

Indubitavelmente é instituto que deveria ser rapidamente integrado ao Sistema Penal, uma vez que a lacuna hoje verificada conduz à situações aberrantes, a saber: querer enquadrar como crime doloso (dolo eventual), fatos nitidamente culposos.  

Recorde-se, por exemplo, o incêndio na boate Kiss, ocorrido em janeiro de 2013. Também sem querer se imiscuir no caso concreto, tão-somente tratando no caso em tese. Por tudo que fora divulgado pela imprensa e reiterado pelas investigações, ficou patente a ocorrência de crime culposo, contudo, uma vez mais, o clamor social, o grande abalo causado pela tragédia impede o reconhecimento do fato típico em análise.

A prevalecer a tese do dolo eventual, ter-se-ia que aceitar que os integrantes da mineradora anuíram com as mortes de dezenas de pessoas, não só as consumadas, mas as tentadas também.  

Mais uma vez: não se pode confundir a falta de cuidado objetivo, se existente, o desleixo, a imprudência (caso tenha existido no caso em comento) com a vontade de ofender a vida de terceiros. Por outro lado, se a pena prevista para os casos de delitos culposos não é suficiente para atender aos anseios da população, não deve o Estado escolher, injustificadamente, a modalidade mais grave, tão-somente pelo fato de apresentar reprimenda mais dura.  

Repita-se o que já foi dito outrora: uma vez defenestradas garantias fundamentais, entra-se num perigoso Estado de Direito, que definitivamente não será Democrático.