Em entrevista ao jornal francês Le Monde (aqui em francês), o cantor e compositor Caetano Veloso diz que “aposta no povo brasileiro” nesse período de eleições e cita as declarações sobre a ditadura, além de “todas as frases horríveis que ele se deu o direito de proferir contra as mulheres, os homossexuais, os povos indígenas e a proteção do Meio Ambiente” como as piores declarações do candidato da extrema-direita.
“O Brasil pode sofrer muito, mas espero que, ao invés de ser a porta pela qual o horror entrará na América Latina, possamos nos tornar uma luz diferente para iluminar o mundo futuro”, diz ele.
Caetano também escreveu um texto contra Bolsonaro no The New York Times. “No final da década de 1960, a ditadura militar no Brasil prendeu e aprisionou muitos artistas e intelectuais por suas crenças políticas. Eu era um deles. Os militaristas estão de volta”, escreve ele no jornal de maior circulação no mundo.
Confira a íntegra da entrevista ao Le Monde, traduzida por Sylvie Giraud:
Você expressa publicamente sua oposição a Jair Bolsonaro. Quais são os sentimentos que o movem?
É um candidato que diz coisas que reprovo e elogia coisas que abomino. Como vivo em uma democracia, disse em quem votaria: Ciro Gomes no primeiro turno e Fernando Haddad no segundo. Respeitarei o presidente eleito, seja ele quem for, esperando apenas que meus direitos como cidadão sejam igualmente respeitados.
Quais são os aspectos do seu discurso que mais o incomodam?
Primeiro, o elogio da ditadura dos anos 1960 e 1970 e dos torturadores. Em seguida, todas as frases horríveis que ele se deu o direito de proferir contra as mulheres, os homossexuais, os povos indígenas e a proteção do Meio Ambiente, aproveitando-se da banalização dos maus comportamentos que domina as redes sociais. A onda infra-intelectual que inundou os jornais brasileiros valoriza a estupidez como um escudo contra o politicamente correto. Bolsonaro prosperou em contra corrente dos avanços realizados durante os governos de Fernando Henrique Cardoso e Lula. Ele também está surfando sobre uma forma de moralismo que associa luta contra a corrupção e conservadorismo.
O que você acha do Partido dos Trabalhadores?
Eu nunca pertenci a um partido. Para mim, a criação do PT nos anos 80 significou que nossa sociedade estava entrando em uma fase de maior maturidade. Era um Partido orgânico, com bases sólidas e dotado de uma direção que era emblemática graças à figura de Lula: um operário da indústria, vindo de uma região pobre e gozando de uma sagacidade política fora do comum. Na época, o desenvolvimento do PSDB de Fernando Henrique Cardoso e de Mario Covas também representava um grande avanço. No começo eu não votei em Lula, mas em Leonel Brizola, um político teimoso com alma de estadista. (…) Depois, votei para eleger Fernando Henrique Cardoso. (…) Em seguida votei em Lula: achei que a hora dele tinha chegado. Não me arrependo de ter ajudado a eleger Fernando Henrique Cardoso e Lula. O primeiro ajudou a melhorar a vida de milhões de brasileiros, graças ao plano Real, pondo fim à hiperinflação. Lula tirou o Brasil do mapa da fome graças à Bolsa Família.
Os escândalos de corrupção, claro, são muito traumáticos (…), mas também mostraram algo novo: os brasileiros nunca antes haviam visto pessoas ricas e poderosas sendo presas. Em uma sociedade que ainda conserva marcas do sistema escravocrata, apenas os pobres (a maioria negros) eram presos. As decisões judiciais que colocaram Lula atrás das grades levam a pecha de certo rancor anti-PT. Mas não gostaria que tudo isso ficasse impune. Quando o juiz Moro vazou a conversa telefônica entre Dilma Rousseff e Lula, esse vazamento não estava isento de segundas intenções eleitorais. O próprio juiz reconheceu a irregularidade de sua iniciativa. Nem todos os juristas concordam com a sentença aplicada a Lula, que parece inconsistente para quem não tem lado. Seis dias antes do primeiro turno, o juiz Moro tornou pública uma parte das acusações do ex-ministro Palocci contra Lula.
Penso que o ciclo do PT e do PSDB chegou ao fim. Mas acho bonita a lealdade de grande parte do povo para com Lula. Sua gratidão.
Se Bolsonaro vencer, o que você fará?
Eu simplesmente continuarei a compor, a tocar, a transmitir e aprender com meus filhos e netos. A viver dignamente, fazendo contraponto a uma política malcheirosa criada pela Internet, pelos “super” intelectuais que não se assumem e os sub-intelectuais que desprezam a inteligência.
Quais são as fontes de esperança hoje?
Aposto no povo brasileiro. Podemos estar escrevendo uma nova história, ainda que seja com linhas curvas. Talvez tenhamos de passar por novas dificuldades para aprender o que ainda não sabemos. Nós já aprendemos muito. A onda de populismo conservador é global. Se pensarmos em tudo o que foi construído a partir da década de 1960, ela nos faz retroceder. Enquanto isso, os analistas do mercado financeiro não se importam com a forma pela qual seus lucros serão preservados. O Brasil pode sofrer muito, mas espero que, ao invés de ser a porta pela qual o horror entrará na América Latina, possamos nos tornar uma luz diferente para iluminar o mundo futuro.