Nos últimos 20 anos, o Brasil investiu R$ 18,7 milhões na produção audiovisual brasileira sem obter qualquer retorno. A cifra nunca deu origem a filme algum nem foi devidamente devolvida aos cofres públicos. Ela é a soma de tudo o que foi captado, via renúncia fiscal, por 17 projetos que hoje integram uma espécie de lista negra da Agência Nacional do Cinema (Ancine): a das produções com contas reprovadas.
Se fosse aplicado, esse valor seria suficiente para produzir três filmes do porte de “2 filhos de Francisco” (2005), que custou cerca de R$ 6 milhões, ou nove “O som ao redor” (2013), orçado em pouco menos de R$ 2 milhões.
A lista foi solicitada à Ancine com base na Lei de Acesso à Informação. Na relação existem projetos para públicos diversos. Há, por exemplo, uma adaptação do livro “Alice no País das Maravilhas”, de Lewis Carroll, que deveria ter saído do papel em 1996; uma do romance “Memorial de Maria Moura”, de Rachel de Queiroz, idealizada em 1997; um documentário com depoimentos de Betinho, de 1998; e o polêmico longa-metragem “Chatô, o rei do Brasil”, para o qual o produtor Guilherme Fontes começou a captar dinheiro em 1995. O valor investido também varia muito. Numa ponta está o doc sobre Betinho, que captou R$ 8 mil; na outra, “Chatô”, com R$ 8,6 milhões.
Segundo a Ancine, as 17 produtoras da lista não podem “aprovar novos projetos, prorrogar, redimensionar, remanejar ou obter autorização para movimentar recursos já aprovados”. Elas também estão “impedidas de contratar com o Fundo Setorial do Audiovisual ou receber apoio de fomento direto da agência”.
Mas, hoje, a maioria dessas produtoras não é sequer localizável. Muitas talvez nem existam mais.
Projetos condenados datam de 1995 a 2003 – Outra informação importante extraída da lista negra da Ancine é a antiguidade das produções condenadas. Todas datam de 1995 a 2003. Dos projetos apresentados desde então, ainda não houve condenação — o que indica a existência de uma demora de pelo menos dez anos para que a agência reguladora reprove de forma definitiva as contas de uma produção apoiada.
— Não existe na Ancine nenhuma regra que fixe o tempo que ela tem para avaliar as contas de um projeto — diz Pedro Genescá, advogado especializado em leis de incentivo. — E isso é muito ruim, já que, na legislação brasileira, há prazos claros para expirar a punibilidade de crimes.
E não basta a Ancine reprovar as contas de um projeto para que uma produtora seja obrigada a devolver o dinheiro. Por regra, a agência precisa repassar o caso ao Tribunal de Contas da União (TCU), para que ele faça uma segunda avaliação — um trâmite que pode demorar mais alguns anos.
Das 17 produções já condenadas pela Ancine, cinco ainda não chegaram ao TCU, informa o órgão federal por meio de sua assessoria de imprensa. Das demais, oito estão em processo de análise, e quatro foram condenadas. Segundo o órgão, estas terão que devolver ao Tesouro a verba que captaram. E devem pagar uma multa de 50% sobre esses valores.
— Acontece que é bem provável que essas produtoras recorram ainda à Justiça Federal — afirma Genescá. — É que, depois da Ancine e do TCU, o proponente ainda pode ir à Justiça comum. E lá, devido à enorme demanda acumulada, o processo deve levar pelo menos dez anos para ser julgado. Por isso é muito pouco provável que o produtor Guilherme Fontes, por exemplo, seja obrigado de forma definitiva a devolver alguma coisa antes de 2025.
Segundo a Advocacia Geral da União (AGU), órgão que executa a cobrança das contas reprovadas tanto pela Ancine quanto pelo TCU, nenhum dos quatro projetos condenados quitou sua dívida com os cofres públicos.
Produtores culpam a burocracia da Ancine
Nas últimas três semanas, a reportagem tentou localizar as 17 produtoras da lista. Seis já não têm site, telefone ou e-mail ativos. E oito não responderam ao pedido de entrevista.
Responsável por dois projetos na lista, o produtor Bruno Stropianna diz que a culpa é da própria Ancine. Produtor de filmes como “O Xangô de Baker Street” (2001) e “Capitães da areia” (2011), Stropianna teve dois projetos com contas reprovadas pela agência: “Alice in Rio” (1996), da produtora Sky Light Cinema, Foto e Art, e “Amazônia para jovens” (2003), pela Studio Uno Produções Artísticas. O primeiro captou R$ 225 mil e foi condenado pela Ancine e pelo TCU. O segundo, que arrecadou R$ 721,5 mil, espera o tribunal.
— “Alice in Rio” foi um projeto que não andou, como dezenas de outros que não andam — diz Stropianna. — O valor captado está até hoje na conta do projeto no Banco do Brasil. A produtora não pode mexer nele (porque não conseguiu captar o limite mínimo para liberar a verba). Não entendo por que a Ancine não o recupera.
Sobre “Amazônia para jovens”, o produtor diz que o documentário está pronto há quatro anos, mas caiu na malha fina por não ter apresentado um pré-requisito da agência: uma cópia em 35mm.
— Era um projeto para TV, feito em vídeo, mas a Ancine exige uma cópia em película — ele explica. — Não tínhamos mais dinheiro para fazer essa transferência, e a agência não quis redimensionar o projeto. Precisaríamos de mais R$ 100 mil para fazer a cópia.
Segundo o produtor, a Ancine guarda a versão em vídeo, e a pendência o impede de usar o filme comercialmente:
— Eles não nos chamam sequer para conversar e negociar.
Procurada, a Ancine não quis comentar o caso.
Tarcísio Vidigal, da produtora Grupo Novo de Cinema e TV, também aparece na chamada lista negra da Agência Nacional do Cinema (Ancine). Responsável por produções famosas como “A dança dos bonecos” (1986) e “Menino Maluquinho: o filme” (1994), ele responde agora pelo projeto “Gavião, o cangaceiro que perdeu a cabeça”.
Idealizado em 2003, o longa-metragem captou, segundo a Ancine, R$ 1,2 milhão para narrar a história fictícia do cangaceiro Antão, figura que teria pertencido ao bando de Jesuíno Mourão. A direção seria de Geraldo Sarno.
Com contas reprovadas pela agência, a produção será agora avaliada pelo Tribunal de Contas da União (TCU).
Vidigal, como Bruno Stropianna, culpa a Ancine:
— Há um erro nos dados. Eles dizem que captei R$ 814 mil e, depois, outros R$ 460 mil para o mesmo filme. Mas foram R$ 400 mil, num edital da Lei Rouanet, e R$ 460 mil num edital da Ancine. Há um erro nos valores.
Vidigal afirma que o filme ainda sairá do papel. Ele promete produzir “Gavião” no ano que vem:
— Já fiz 25 longas. E não larguei nenhum pela metade. Qualquer produtora tem problemas. Não é por uma questão burocrática da Ancine que vou deixar de filmar.
Para a advogada Cristiane Olivieri, mestre em Política Cultural pela Universidade de São Paulo (USP), a questão mais importante em torno das prestações de contas é saber como o cidadão foi atingido.
— O principal é se o filme foi feito e se a sociedade poderá ver o resultado do investimento. Porque, no fim das contas, estamos falando de impostos, de dinheiro que poderia ter sido aplicado em outros setores, mas que foi para a cultura. O importante é que os brasileiros tenham cinema — afirma ela.
Ancine e TCU não souberam estimar quanto tempo ainda pode ser necessário para que os filmes saiam do papel ou o dinheiro retorne ao Tesouro.