O reconhecimento de uniões estáveis não monogâmicas — ou seja, entre mais de duas pessoas vivendo sob o mesmo teto — deve voltar nesta terça-feira à discussão no Conselho Nacional de Justiça (CNJ). O resultado do julgamento vai pautar o trabalho de todos os tabeliães de notas do país, já que o CNJ é a entidade que controla a atividade dos cartórios.
O debate teve início em 4 de abril de 2016, quando a Associação de Direito das Famílias e das Sucessões (ADFAS) entrou com um pedido para que a entidade impeça o registro de uniões entre mais de duas pessoas. Nove dias depois, a ministra Nancy Andrighi concedeu uma liminar recomendando aos tabeliães de notas do país que aguardassem o julgamento do caso.
A análise começou no último dia 24 de abril, e o relator da matéria, o ministro João Otávio de Noronha, votou pela proibição do registro. No mesmo dia, o conselheiro Aloysio Corrêa pediu vista, e o julgamento foi interrompido, voltando à pauta hoje. Mais 13 conselheiros precisam votar. Procurado, Noronha não quis dar entrevista.
No pedido da associação são citadas as escrituras de dois trisais, uma lavrada em Tupã (SP), em 2012, entre um homem e duas mulheres, a primeira no país, e outra em São Vicente (SP), em 2016, também entre um homem e duas mulheres. Ambas as partes, a associação e a tabeliã que registrou essas uniões poliafetivas, podem recorrer, o que levaria a matéria ao Supremo Tribunal Federal.
Mais de 30 registros no país
A presidente da associação, Regina Beatriz Tavares da Silva, é taxativa ao defender o modelo monogâmico. Diz que o artigo 226 da Constituição é claro ao restringir o conceito de família a duas pessoas, homem e mulher, e que mesmo a decisão do STF que reconheceu as relações homoafetivas, em 2011, foi baseada no modelo heterossexual — ou seja, igualmente monogâmico.
— São escrituras ilegais. Não há ordenamento jurídico no país para a atribuição de efeitos de direito de família a esse tipo de relação — diz ela.
Em uma espécie de vácuo legal, desde 2012 foram registradas cerca de 30 uniões estáveis com mais de duas pessoas, segundo o Instituto Brasileiro de Direito de Família (IBDFAM).
— Estão querendo condená-las à invisibilidade. Se o CNJ proibir os tabeliões de fazer as escrituras, será um grande retrocesso histórico. E não é questão de ser a favor ou contra esse tipo de relação. O Estado não tem que intervir — diz Rodrigo da Cunha Pereira, presidente da entidade.
Em nova configuração: ‘trisal’
A estudante Amanda Lopes, 22 anos, “entrou em choque” quando pisou pela primeira vez em uma academia em Lorena, interior de São Paulo, e viu o proprietário, Jorge Augusto Ribeiro Daniel, 30 anos. O objetivo era apenas malhar, mas os dois se aproximaram e cerca de dois anos depois assumiram um namoro. Ao longo da relação, “sem tabus e com muito diálogo”, Amanda confessou seu interesse em relacionar-se também com outras mulheres.
Ela e Daniel viveram um período separados e depois reataram. Porém, em uma nova configuração: o casal virou “trisal”, ao incorporar a estudante Letícia Moreira, 18 anos.
Os três estão juntos há dois anos e três meses. Moram sob o mesmo teto, dividem a mesma cama — de casal com uma de solteiro acoplada —, compartilham as contas de casa e os afazeres domésticos. Vivem como um casal tradicional, mas com uma pessoa a mais.
No momento, Daniel diz que não é prioridade para os três registrarem a relação em cartório, ainda que não descartem a possibilidade no futuro para terem direitos, como a inclusão no plano de saúde, acesso ao seguro de vida, divisão de bens em caso de separação e recebimento de pensão.
— O direito deve existir para todos, inclusive aos poliamoristas — defende Daniel, acrescentando que os três consideram adotar uma criança.