A intrigante imagem de arranha-céus, construídos a poucos metros da faixa litorânea, causando uma indesejada sombra na areia da praia, e diminuindo o alcance do sol, causou espanto no país. No local, um dos mais badalados da América Latina, o Balneário Camboriú, em Santa Catarina, o poder público teve que aterrar parte da praia, para aumentar sua extensão, e assim permitir que o sol no meio da tarde, alcançasse novamente a areia, rodeada por concreto e aço.
Tal situação, guardada as devidas proporções, corre sério risco de acontecer em Ilhéus. Isso é o que alertam pesquisadores, arquitetos, e ambientalistas. Segundo eles, caso algo não seja feito imediatamente, o destino da costa sul ilheense pode ser o mesmo, com altíssimos prédios transformando as praias, a partir de determinado horário, em indesejadas zonas sombreadas artificialmente.
E isso já está acontecendo. Fato apontado pelo colaborador do Ilhéus 24H, Cezar Augusto Filho, Especialista em Gestão Costeira, Mestre em Sistemas Aquáticos Tropicais, e doutorando em Geologia, e devidamente comprovado e registrado pela reportagem.
Nas imediações das cabanas Soro Caseiro, e Tropical, devido a presença dos edifícios erguidos próximo, a presença do sol na praia já foi encurtada em cerca de uma hora e meia.
O pesquisador destaca que algo deve ser feito logo, porque o processo de verticalização está a todo vapor, e ressalta, “quanto maior a urbanização, e o investimento, mais vulnerável torna-se toda a área no entorno”.
Ele explica que as regiões costeiras são as mais dinâmicas da Terra, devido às oscilações do nível do mar, ondas e marés, dadas por vários fatores. Logo, afirma Cezar, quando se tem esse tipo de urbanização próximo à linha de maré, não levando em consideração o planejamento das cidades a longo prazo, se torna um investimento de risco. Isso justamente por estar em área vulnerável, suscetível mais do que qualquer outro local, a processos erosivos que costumam acontecer próximo ao mar.
Cezar afirma que muitos projetos que merecem maior discussão por parte da sociedade, estão sendo aprovados, e isso vem motivando setores da sociedade organizada, a buscarem a justiça, para que haja respeito às leis ambientais, e o máximo de convívio harmônico entre a natureza, e a inevitável expansão imobiliária na área.
“A população precisa saber o que está acontecendo, qual o problema que isso pode acarretar. Será que o interesse privado está acima do interesse público?”, questiona.
TORRE DE 23 ANDARES – A decisão para que construções de grandes proporções sejam autorizadas ou não no município, partem do aval do Conselho Municipal de Meio Ambiente (Condema), colegiado composto por representantes do poder público municipal, da sociedade civil, e de organizações não governamentais. Mas, antes de chegar ao conselho, a decisão primeiro é avaliada pelos setores de Urbanismo e Meio Ambiente da prefeitura. Eles têm a função de pré avaliar, analisar os detalhes técnicos e encaminhar seus pareceres técnicos para a plenária do Conselho de Meio Ambiente.
Na segunda-feira (18), caberá ao referido colegiado, a decisão para a liberação ou não da construção de uma grande torre de 23 andares no km 04 do litoral sul, dando continuidade ao já iniciado processo de sombreamento da praia. O projeto já recebeu um parecer favorável (n° 000485/2021) por parte da prefeitura de Ilhéus.
Membros do IESB , Instituto Nossa Ilhéus, Instituto Floresta Viva e Instituto Marola, – que compõem o Condema, em conversa com o Ilhéus 24H, afirmam que o referido empreendimento, o Unique Park, propiciará uma anormal sombra na praia, em determinados períodos do ano. Porém, deixam claro que não são contra a construção de torres em locais mais afastados da praia.
Eles ressaltam que, infelizmente, a atual legislação municipal de uso e ocupação do solo, permite a construção de torres de qualquer altura, na faixa litorânea, embora a questão da sombra deveria ser considerada um impedimento, um impacto negativo e inaceitável. “Contudo, os gestores municipais não parecem estar preocupados, já que o empreendimento está pré-aprovado, e a decisão final será tomada em reunião do conselho, nesta segunda-feira (18), às 17:30h, em reunião virtual, aberta a todos os interessados”, informam.
Os integrantes do Conselho destacam que o Plano Diretor de Desenvolvimento Urbano de Ilhéus (PDDU), lei que é o instrumento básico da política de desenvolvimento e expansão urbana do município, está desatualizado. Eles esclarecem que o plano é de 2006 e deveria ter sido atualizado em 2016. “A legislação federal obriga a atualização a cada dez anos, pelo menos. Esta questão também foi debatida na última reunião do Conselho de Meio Ambiente do município”, pontuam.
Eles enfatizam que não são contra a construção civil, porém, acham de grandiosa importância que a população de Ilhéus tenha todas as informações, a respeito dos prejuízos que a expansão imobiliária excessiva na faixa litorânea pode causar. Fator que, destacam, pode ser muito bom e lucrativo para as construtoras, “mas será que é benéfico para a cidade, aos moradores?”, indagam.
“Esta discussão precisa ser feita. Veja que em Salvador não tem prédios elevados na beira da praia, desde Amaralina até Itapoan. Lá o plano diretor não permite. A orla é área de interesse coletivo, é patrimônio público, não pode ser apropriada pelas construtoras. Não se pode construir do jeito que quiser e onde quiser”, explicam.
Os membros do Condema afirmam que a lei municipal de uso e ocupação, atualmente é muito permissiva, e enfatizam que as faixas litorâneas em todo lugar do mundo, são áreas de baixa densidade urbana, e devem ser destinadas ao lazer, esporte, cultura, e à preservação ambiental. “Tem muitos interesses econômicos e políticos envolvidos nesta questão, mas, a discussão deve ser pautada pelo interesse da coletividade e pela qualidade de vida da cidade e sua viabilidade no longo prazo”, destacam.
Para ilustrar o exemplo, eles citam o caso de Camboriú, onde, depois que as empresas lucraram com a construção dos arranha-céus, foi gasto R$ 67 milhões pela prefeitura local para alargar a praia, e novamente revalorizar ainda mais os mesmos arranha céus que causaram o problema.
O ARQUITETO – Segundo Michel Hoog Chaui do Vale, arquiteto e paisagista, especialista em engenharia urbana e doutorando pela USP, há dois problemas em relação ao processo atual de verticalização desordenada na Zona Sul de Ilhéus. O primeiro, destaca, é de infraestrutura, onde o aumento de área construída de forma bastante rápida e intensa, vai gerar uma demanda sobre as redes de infraestrutura da cidade.
“A questão de abastecimento de água, de rede de esgotos, sistema viário, transporte coletivo, equipamentos institucionais (postos de saúde, escolas, delegacia, correios etc.), espaços de lazer. Enfim, toda uma rede de infraestrutura necessária para a vida dessa população que está crescendo e vai crescer muito mais, precisa ser fornecida junto com a verticalização”, pontua Michel Chaui.
O arquiteto baiano criado em Ilhéus, e hoje radicado em São Paulo, pontua que o segundo problema é de ordem cultural e da paisagem. Segundo ele, a zona sul de Ilhéus e toda sua extensa faixa litorânea, tem um apelo e uso consolidados tanto para população da cidade quanto para os turistas ligados ao lazer.
“Essa região é marcada pela fruição dessa paisagem litorânea. Quando ela é drasticamente alterada pela presença dos prédios de 12, 15 e mais de 20 andares, a cidade perde de maneira irreversível o apelo que a praia exerce sobre a população local e os turistas. A praia como lugar de belezas naturais, de vida marinha e vegetação característica é substituída por um modelo de urbanização vulgar que avança sobre a praia, sufocando a paisagem natural”, destaca Chaui.
Ele enfatiza que há uma possibilidade de evitar tudo isso: a revisão da legislação municipal permissiva que hoje abre brecha para esse tipo de ocupação. O arquiteto destaca que é preciso rever os parâmetros da ocupação da zona sul de Ilhéus, e mesmo mantendo essa região como área de expansão urbana, é preciso definir limites para que o bairro que se está construindo tenha qualidade.
“É imprescindível que se planeje ruas, calçadas, praças e equipamentos públicos para atender aos moradores que virão. Deve-se cobrar pelo respeito a distância entre as edificações, a rodovia, e a praia, e que a altura dos prédios tenha mais respeito com a paisagem”, aponta.
Michel Chaui reforça a necessidade que urge da revisão do P.D.D.U, e enfatiza que essa deve ser a prioridade número um em Ilhéus, para evitar o que ele classifica como “ocupação desastrosa e descaracterização irreversível de sua paisagem”.
MORADORAS – Os impactos dessa urbanização em escala ascendente vem trazendo mudanças no cotidiano de quem já morava no litoral sul há mais tempo. A exemplo de Alejandra Kandus, professora da Uesc, moradora do condomínio Mar a Vista. Ela destaca que reside no local há 11 anos, e vem percebendo a transformação impactante da região.
“Não sou contra a urbanização dessa área, muito pelo contrário. Mas acho que deveria ser feita de acordo com a geografia da região, com prédios mais baixos, que permitam ver o sol desde a praia até umas 16h, por exemplo”, ressalta.
Alejandra enfatiza que a zona sul precisa de infraestrutura escolar e sanitária, e lamenta o fato das quedas de energia no bairro terem aumentado, em especial nos fins de semana e feriados. Segundo ela, devido aos enormes prédios, que demandam muita energia elétrica quando estão ocupados.
Ela finaliza afirmando que o exemplo negativo de cidades como Camboriu, que se tornou um paredão de prédios, deve servir de alerta, e cita casos positivos, como as orlas de Vitória-ES e Aracajú-SE.
Outra moradora da área, a professora Júlia Oliveira, residente no loteamento Pérola do Mar, afirma que esse crescimento desordenado no litoral sul da cidade, mostra a carência de ações auto sustentáveis, dentro de uma política do bem viver, e isso, segundo ela, é considerado progresso de fato. A professora aponta que isso é justamente o que não vem acontecendo na zona sul.
Júlia afirma não acreditar que haja, por parte do poder público municipal, um estudo a respeito das consequências dessas construções desordenadas. Pelo menos que os moradores tenham conhecimento.
“Existe toda uma uma população do bairro do Nossa Senhora da Vitória, e o entorno, que trabalha na praia, tira de lá seu sustento. E, quando é diminuída a presença das pessoas em um espaço que é público, o poder público se ausenta, e continua dentro da perspectiva do desenvolvimento de um progresso que é de um determinado grupo apenas, e não para a população ilheense”, esclarece.
A professora Júlia ressalta que também não há nenhum tipo de estudo aparente, a respeito dos impactos que a construção dos grandes edifícios têm em relação às residências mais baixas, localizadas atrás. Ela lamenta o fato de que há ampliação de construções, mas não há a ampliação de serviços. “As concessionárias funcionam muito mal. A Coelba fez a ampliação da rede, mas não construiu nada. A Embasa não terminou a estação de tratamento. O serviço de telefonia é horrível. O poder público é ausente, ele habilita essas novas construções, mas não amplia a infraestrutura que deveria ter a mesma ampliação”, pontua.
Júlia ainda chama a atenção para dois fatores relacionados à forma desregrada que a expansão imobiliária vem acontecendo na área. Segundo ela, os mico-leões que habitam uma floresta local, e que vem sendo gradativamente devastada, dando espaço a novos empreendimentos, passaram a andar pelas fiações dos postes. A professora também expressa sua preocupação com a crescente quantidade de esgoto que vem sendo despejada no mar, que, segundo ela, pode transformar a praia local em uma “nova” Praia da Avenida Soares Lopes. Segundo ela, a praia costuma atrair poucos banhistas, devido justamente ao esgoto domiciliar despejado por lá, sem nenhum tratamento.
O SECRETÁRIO – Procurado pelo Ilhéus 24H, o secretário municipal de Meio-Ambiente, José Victor Pessoa, afirmou que todas as construções no município de Ilhéus, somente são liberadas se estiverem dentro da legalidade, ou seja, cumprindo o que determina a lei.
Em relação aos problemas da expansão imobiliária excessiva, e a urbanização desorganizada do litoral sul, o titular da pasta reconheceu que, de fato, Ilhéus precisará de uma nova legislação, ou seja, um novo Plano Diretor, “disciplinando o uso do solo urbano”.
O secretário finaliza afirmando que todos os edifícios que estão sendo erguidos na zona sul, estão cumprindo a legislação vigente.