ILHÉUS 24H :: Porque a notícia não para. Porque a notícia não para

JOGANDO DARDOS SEM MIRAR O ALVO

RODRIGO MELO

Rodrigo Melo é Catitu, filho de Ilhéus, pai de Amaralina e fera no pingue-pongue.
Rodrigo Melo é Catitu, filho de Ilhéus, pai de Amaralina e fera no pingue-pongue.

A última vez que nos encontramos foi numa sala de espera em um hospital. Eu aguardava ser chamado para tirar um sinal em meu braço. Era um sinal vermelho e esquisito que aparecia pela segunda vez. Anos antes, em outro hospital, um médico o havia retirado, mas ele então voltara e parecia bastante intimidador.

O lugar estava cheio. Os números surgiam no monitor, nós íamos até o balcão, a atendente preenchia a ficha, depois voltávamos a sentar e esperávamos o enfermeiro gritar o nosso nome para finalmente sermos atendidos. Vez ou outra alguém gemia. Nunca me agradou fazer hora em hospital. Não gosto do cheiro e da terrível iminência de algo acontecer. A voz do médico, grave e pausada, a dizer, por exemplo, que aquilo no meu braço não era bem um sinal. 

Eu olhava para a cara das pessoas na esperança de que o tempo passasse mais rápido, tentando adivinhar o que as levara até ali: dor na coluna, dengue, circulação sanguínea, bronquite ou um corte no pé. Olhava para as mulheres, sobretudo para as enfermeiras, e calculava se eram casadas ou não, quem poderia ter fodido na noite anterior ou como cada uma delas ficaria metida em uma minúscula cinta liga vermelha. Ou então como seriam seus gemidos. Coisas assim. De modo que estava distraído quando ele tocou no meu ombro. Tinha a cabeça raspada, estava mais magro, mais pálido e com olheiras. Mancava também. Anos antes, frequentara algumas festinhas em sua cobertura, uma vista magnifica para o mar e para a baía, as garotas, os gritos, os sorrisos e ele lá, bêbado, declamando um poema de Ginsberg ou de Geraldo Carneiro, contando vantagens sobre as viagens pro Rio, sobre ter fumado com Caetano ou Gil ou sobre um barco que compraria para cruzar o mundo. Agora, apenas aquilo, um sorriso amarelo e constrangido, um olhar que não se fixava muito bem.

-Que houve? – perguntei, imaginando que falaria sobre algum acidente.

-Estou fodido, meu velho – respondeu. – Eles acabaram comigo.

-Eles?

-Eles… – lentamente aproximou-se e, falando baixo como quem conta um segredo, disse – Aquele cara e aquela mulher ali no fundo, tá vendo? A médica e o enfermeiro da clínica onde estou. Aquele negão encostado na saída é o outro enfermeiro. Ficam me vigiando, acham que vou fugir. Não puderam me dopar hoje. Vim fazer uns exames.

A mulher e os dois sujeitos de fato não paravam de nos olhar.

-Que clínica é essa? – perguntei.

-Pra loucos. Mas é tudo uma invenção dos meus irmãos. Eles não querem que eu participe dos negócios e por isso me meteram lá, sacou? Disseram que tenho esquizofrenia, mas sei que não tenho. Esquizofrenia é genético. Se eu tiver, eles também têm… Mas eu vou dar um jeito de sair de lá… 

-Certo.

-E você, o que tem feito?

-Eu? Estou tranquilo. Tenho uma filha.

-Puxa, que ótimo – ele falou e seus olhos se iluminaram. – Era pra eu ser pai também, mas a minha namorada na época decidiu abortar. Acabamos por isso. Chamei ela de assassina.

-Ah…

A essa altura a mulher que ele disse ser a médica da clínica e os dois enfermeiros já estavam do nosso lado. Ninguém me cumprimentou. Pareciam zangados. Talvez achassem que não era bom para ele encontrar um velho amigo, e é bem possível que tivessem razão.

-Vamos, Roberto – ela disse, segurando no cotovelo dele –, você já vai ser atendido.

E eles então seguiram pelo corredor, a médica na frente e o meu velho amigo ladeado pelos dois caras.

Nessa hora senti pena. Não apenas dele, mas também de mim. Passáramos tempo demais acreditando em letras de músicas, na mágica da vida, na grandeza de existir. Colecionamos histórias que não fazem mais sentido. O mundo mudou. Na verdade, nós é que despertamos. Não há mágica. A vida é realidade. E os vencedores não somos nós, Roberto, que miramos o vácuo. Os vencedores seguiram os conselhos dos tios e dos pais. Eles têm o sorriso completo e branco. Eles sabem de cor o cardápio do Outback e tem conta ativa no instagram.

Não demorou muito para que eu fosse chamado. O médico era um rapaz de vinte e poucos anos sorridente e agradável. Deram-me uma espécie de bata com abertura nas cotas, deitaram-me sobre uma maca, aplicaram uma anestesia em meu braço e em menos de dez minutos eu já estava livre do câncer e do fim.

E tudo ficaria para trás nessa nuvem que chamam de lembrança, não fosse uma coisa, triste e inesperada coisa, a notícia que li no jornal: um paciente de uma clínica psiquiátrica havia caído do sétimo andar. E eu então fiquei a pensar nele. Não no homem destroçado que encontrara da última vez, mas no Roberto de antes, uma espécie de Torquato Neto sem talento, mas endinheirado, a caminhar sobre uma mesa com uma garrafa de uísque na mão: um guia de cegos, perdido, sobre uma corda mais que bamba. Acho que eu gostava dele. Uma hora daquelas, sem ainda compreender porra nenhuma, talvez estivesse vagando pelo espaço, a decidir pra onde ir, porque talvez sejam muitas as direções. Talvez exista uma porção de caminhos, alguns dando no mesmo lugar. Ou talvez não exista merda nenhuma, e, como disse um inglês, a luz no fim do túnel é apenas o trem que vai te atropelar. Mas então um moleque aparece e o segura pela mão. Um moleque engraçado que segue com ele e o salva de mais uma estrada cheia de buracos. E meu amigo parece tranquilo e feliz como se tivesse entendido a coisa toda, como se não precisasse mais se preocupar. Esse moleque, na minha cabeça, é o filho que sua ex-namorada abortou.