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LOIRO D’ÁGUA

RODRIGO MELO

Rodrigo Melo é Catitu, pai de Amaralina, filho de Ilhéus, escritor e fera no pingue-pongue.
Rodrigo Melo é Catitu, pai de Amaralina, filho de Ilhéus, escritor e fera no pingue-pongue.

A campainha toca e eu largo a caneta e o papel sobre a mesa e vou atender. Talvez seja o oficial de justiça. É uma senhora com uma sacola cheia de tecidos. Minha mulher costura, de maneira que sempre aparecem essas madames, quase todas usando óculos escuros, carros bacanas, cheirando bem, elas que não deixam de apertar a campainha até eu aparecer e dizer, pronto, estou aqui. São mulheres de médicos e também de advogados e de toda essa turma que parece ganhar dinheiro. Mesmo assim elas costumam ir às lojas caras, pegam cinco ou seis roupas para experimentar em casa, no caminho compram tecidos e trazem tudo pra cá. Dois dias depois retornam às lojas dizendo que as roupas ficaram longas ou curtas demais. Ou qualquer merda do tipo. Essa que tocou a campainha agora é uma senhora de 50 e poucos anos. Não sorri nem nada.

-Ela saiu – digo.

-Ah, que coisa. Não vou voltar depois. Essa rua é péssima. Tenho medo.

-Vai ser calçada em breve.

Ela não parece escutar.

– Vou deixar em sua mão e você fala pra ela que é pra fazer tamanho M – diz, sua voz estridente como a de uma mulher que vende produtos na tevê. – O molde é G mas eu quero M. Ela não pode errar nisso.

-Certo.

Vira o rosto, torcendo o pescoço, levantando os óculos e apertando um dos olhos enquanto me encara, os cabelos pintados num loiro muito fraco. Loiro d’água, penso.

-Melhor eu anotar – diz, sorrindo duma forma que não soou muito simpática. – você pode esquecer…

Que Deus e a moçada da humildade me perdoem, mas nesse instante me vem a vontade de me voltar pra ela e dizer, com calma mas com imponência, que não precisa, que se alguém ali tiver que escrever alguma coisa esse alguém sou eu. Tenho intimidade com a caneta, minha senhora, e quando não estou abrindo portas para madames rasas como uma tábua de cortar carnes eu tenho escrito algumas páginas bem boas, algumas páginas cheias de simplicidade e força, a luz a se fazer na quietude dum quarto com vista para um muro cinza, o nome da minha filha escrito nele. Um dia essas páginas serão impressas e todos vão saber quem eu verdadeiramente sou: uma espécie de Harrison Bergeron com uma caneta na mão, louco o bastante para tocar, perdido o suficiente para fazer gente estancar lágrima antes dos outros notarem, o forte brilho da verdade no meio de toda uma escuridão. Um dia, minha senhora, ficará curiosa ao ponto da comichão interna te fazer sair do seu altar e perguntar por aí:

-Mas o marido dela é o escritor?

E alguém te responderá:

-É, aquele gordinho, o que abria a porta.

E a senhora dirá, surpresa:

-Puxa vida, acha que ele tinha cara de escritor?!!!

E eu tirarei onda contigo e com o seu marido e com seus filhos e com todos esses filhos da puta que acham que cagam melhor e vivem reinando em suas patotas. Eu serei foda, minha senhora, e vocês me chamarão para os seus aniversários e ficarão frustrados quando eu não aparecer.
Tudo isso é o que penso dizer, mas nada digo porque sou um covarde e porque ela sorri ao me entregar a sacola com o bilhete dentro: sempre fraquejei na hora de guerrear

Pra falar a verdade, acho que nem sou tudo aquilo que pensei.