Por Malu Fontes, jornalista e professora de jornalismo da Ufba
Nada mais cruel e covarde que atacar quem já não pode se defender ou matar moralmente quem já morreu fisicamente, acusando-os de ter confrontado ou provocado a própria morte. Não se deseja, do mesmo modo, que as redes sociais sejam um quadro em branco disponível para as bestas feras existentes em toda e qualquer sociedade e que agora pedem pena de morte para a oftalmologista.
Uma coisa é certa sobre as redes sociais: ao mesmo tempo em que ajudam as famílias de vítimas de grandes tragédias a mover campanhas de mobilização por esclarecimento e justiça, elas exigem dessas mesmas famílias uma força emocional que não se pode cobrar de quem acabou de ter a vida psíquica estraçalhada. Paremos com a falta de cuidados e bons modos e vamos diretamente ao nome das coisas. Gatos e cachorros se acham no direito de, atrás de seus teclados, matar mais uma vez quem já morreu.
Se ninguém aqui leu alguma toupeira moral e ética dizendo numa rede social que alguma coisa Emanuel e Emanuelle Gomes devem ter feito para provocar a ira da oftalmologista Kátia Vargas Leal Pereira a ponto dessa perseguir com seu carro a moto onde estavam, causando-lhes a morte, agradeçam aos céus e peçam aos deuses para que o mesmo tenha acontecido com a mãe e o pai de ambos. Perder dois filhos e ler coisas desse tipo sem perder a sanidade e a fé na vida é coisa para pouquíssimos. Nada mais cruel e covarde que atacar quem já não pode se defender ou matar moralmente quem já morreu fisicamente, acusando-os de ter confrontado ou provocado a própria morte. Não se deseja, do mesmo modo, que as redes sociais sejam um quadro em branco disponível para as bestas feras existentes em toda e qualquer sociedade e que agora pedem pena de morte para a oftalmologista. Mas, assim como ela não pode ser irreversivelmente inscrita como a tradução encarnada da maldade bípede desumanizada, o casal de irmãos mortos não pode jamais ser responsabilizado pela própria morte. Não eles, mortos nas circunstâncias em que morreram e vistas por todos os consumidores de informação, graças à proliferação de câmeras que hoje tudo registram nas principais vias de qualquer cidade.
Os motoristas odeiam motociclistas? Há uma imensidão de assaltos e crimes no trânsito cometidos com o uso de motos? As mulheres dentro dos seus carros têm pânico da aproximação de motociclistas? As grandes cidades e seu corre-corre estressam as pessoas ao ponto de fazê-las terem crises nervosas, surtos psicóticos e reações extremas de ira? Dando sim para todas essas hipóteses clichês, nem bem o casal de irmãos acabava de morrer, o advogado da oftalmologista já se apressava em montar sua tese da neurose social e da mulher temerosa no trânsito, anunciando solenemente que esse foi o contexto que levou sua cliente involuntariamente para a cena de um ‘acidente’ fatal.
Há alguns meses, um motorista de ônibus ficou furioso contra um médico que, ao ter o carro atingido por uma colisão traseira do ônibus, saiu do automóvel e começou a filmar os danos. Irritado, o motorista não pensou duas vezes: acelerou o ônibus contra o carro já colidido e a família do médico, machucando todos. Naquele caso e contexto, quem teve dúvida de quem era a vítima e o causador da tentativa de homicídio? Por que, agora, alguém ousa, mesmo que seja meia dúzia de anencéfalos, considerar os irmãos como corresponsáveis pela própria morte? É preciso recusar-se a crer que essa avaliação de dois pesos e duas medidas se dá porque Kátia Vargas é uma cidadã tida como do bem. Pessoas do bem e de bem, sim, podem ter surtos. Mas quando o surto resulta na morte de duas pessoas, num contexto registrado e visto por tanta gente, o mínimo que se deve a elas é respeito à sua memória e à dor da família. Ninguém tem o direito de desrespeitá-las impondo-lhes a responsabilidade e culpa pela própria morte. A dor é alheia, mas o bom senso é nosso. Na falta da solidariedade daqueles incapazes de tê-la, recomenda-se o silêncio.