A luz do sol entra pela janela, iluminando e esquentando um dos lados do seu rosto. Minutos depois ele desperta, a espremer os olhos, colocando a mão entre eles e a luz. Senta-se e olha ao redor. Um quarto branco e pequeno, nada de móveis, tevê, quadros ou porta-retratos. Somente uma cadeira com uma bolsa e algumas roupas em cima e, preso ao teto, um fio a segurar uma lâmpada apagada.
Ao lado, sobre a cama, ela ainda dorme. Observa-se esparramada, a boca aberta, o rosto amassado, os cabelos desalinhados, e pensa que agora já não se parece mais com a mulher da noite anterior.
Levanta-se da cama, vai até a cozinha. Um cacho de uvas e algumas latas de cerveja na geladeira. Vai até a sala e se debruça na janela, comendo as uvas e cuspindo os caroços a olhar para uma parte da cidade que não conhecia: uma praça mal cuidada, uma padaria, um bar, uma casa lotérica e, do outro lado, um ponto de ônibus. Alguns prédios, todos com a mesma fachada, ao redor.
-Bom dia, meu amor.
Ela está parada na porta do quarto, os olhos inchados, um sorriso pálido. Caminha até ele, passa o braço ao redor do seu pescoço e tenta beijá-lo.
-Não escovei os dentes – ele diz, recuando e evitando o beijo. – A boca está amarga.
-E o que é que tem? – ela fala, suspirando.
Estica os braços para o alto, espreguiçando-se, depois encosta-se nele e olha para a rua e para praça lá embaixo.
-Adorei você, Mário.
-Mauro – ele responde, cuspindo um caroço de uva.
-Isso, Mauro, eu sabia. Não precisa se zangar.
-Não me zanguei.
-Ótimo. Detesto homem nervosinho… Daqui a pouco tenho que sair, dormi demais. Se quiser fique um pouco. É até melhor sairmos separados. Basta não esquecer de fechar as janelas.
Ela alisa os cabelos dele, como se os penteasse. Encara-o e sorri. Parece que vai dizer algo, mas não diz e por fim vai até o banheiro. Ele a observa caminhar: as costas cheias de pelancas, a bunda caída, as canelas finas como as de um passarinho.
Volta para a cama e estira-se sobre ela. Ainda sente um pouco de sono e não gosta daquela conversa dela sobre ele ser nervoso. Acabou com Selma por conta disso. Ele não era nervoso, mas ela começou a falar tanto, a reclamar e a enxergar apenas os seus defeitos, que um dia simplesmente foi embora. Agora, deitado naquela cama, tenta imaginar como ela está: casada e gorda, cheia de filhos, ou do mesmo jeito, com aquelas pernas grossas que o fizeram se apaixonar. Gostaria de vê-la novamente. Não que a amasse ou se arrependesse. Apenas seria bom.
A mulher volta do banheiro. Os cabelos estão molhados e tem uma toalha enrolada ao corpo.
-Qual o número do seu telefone? – pergunta, desenrolando a toalha do corpo e esfregando-a nos cabelos.
-Não tenho.
-Não tem telefone?
-Perdi. Se quiser me ver, fico sempre por ali.
-Todas as noites?
-Sim.
Senta-se ao lado dele na cama e o encara.
-Me responde uma coisa? Fiquei curiosa.
-O quê?
-Seu nome é Mauro mesmo?
-É.
-Sério?
-Sério.
-Não acredito, um fingir mas vou fingir que sim.
-Finja.
-É que não acho que tenha cara de Mauro. Parece um nome que inventou pra colocar em anúncio…
-Está enganada.
-Tá com a sua identidade aí?
-Pra quê?
-Eu quero ver.
-Porra – ele diz, levantando-se e a encarando -, você não falou que gostou, que foi ótimo? Pra quê essa merda de identidade agora?
-Nossa, você é bem nervosinho mesmo…
Ela penteia os cabelos, depois pega o vestido sobre a cadeira, um vestido prateado cheio de lantejoulas, e se veste.
-Não estou preocupada com o seu nome, meu querido. Foi só uma curiosidade. Falei o que achei.
-Achou errado.
-Peço desculpas se foi isso mesmo. Mas você também não precisa ficar desse jeito.
Pega a bolsa e procura algo. Tira duas notas de cinquenta e entrega para ele.
-Queria ter dormido menos – ela diz.
Tenta beijá-lo. Ele não resiste, mas também não se esforça.
-Vou te procurar, Mauro – ela diz, antes de sair -, gostei mesmo de você.
E ele então está sozinho. Olha para o quarto outra vez. Não há nada a não ser o branco das paredes. Pensa que é como se estivesse dentro de um copo de leite ou qualquer coisa parecida. Fica com isso na cabeça, que é uma mosca a boiar num generoso copo de leite. Deve ser um desses apartamentos para encontros: alugam ou compram um quarto e sala, armam uma cama e descontam as mentiras, os desdéns e as promessas não cumpridas dos maridos. As histórias, quase todas iguais – os carrões e os vestidos caros, a reboque o hálito amargo de fumantes e bebedoras inveteradas, os rostos empoados e destroçados – matronas cheias de traumas e rancores que se acham superiores e interessantes, a falar que você é maluco, nervoso ou o que mais puderem classificar, com aquele jeito de quem sabe tudo, mas que no fundo não sabe de nada, tudo se resumindo a mesquinhez, pedantismo e enganação. Um bando de tranqueiras que por conta de grana acham que podem constranger. Selma nunca se importou com aquilo. Ela não tinha frescura ou armadilhas. Pra Selma um nome era um nome e só.
Estira as pernas e cruza os braços por trás da cabeça. No andar de cima, um homem e uma mulher discutem e lá embaixo um cachorro late e alguém buzina incessantemente dentro de um carro qualquer. Vira-se de lado, o sol o atinge nas costas, e ele solta um arroto com gosto de cerveja e mortadela. Fecha os olhos e tenta dormir um pouco mais.
*Conto publicado inicialmente no livro “O Sangue que Corre nas Veias”, do autor, lançado em 2012 pela editora Mondrongo Livros.