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O QUE A VISTA ALCANÇA

RODRIGO MELO

Rodrigo melo é Catitu, pai de Amaralina, filho de Ilhéus, escritor e fera no pingue-pongue.
Rodrigo Melo é Catitu, pai de Amaralina, filho de Ilhéus, escritor e fera no pingue-pongue.

Dá um gole no café pra despertar, depois vai até a mesa e abre sobre ela o jornal de quarta, seção de empregos. As palavras impressas na página parecem-lhe pequenas e distantes e por um momento ele se lembra da casa em que cresceu, a varanda e os bancos de madeira, a sala com os quadros dependurados, o corredor que ligava a cozinha à garagem, o quintal. Sempre isso. Pensa que perdeu a sorte, que o mundo é um troço escroto e que se tivesse se formado hoje seria médico feito o pai, mas não quis: achava piegas o jaleco branco, as conversas chatas e técnicas demais. Não fora forjado praquilo. Ele que talvez seja louco e quem sabe até já nascera assim, um pouco assim – estranha mistura entre homem e bicho, um tanto de Caim, outro tanto de Abel, algo dos dois. Fecha os olhos, respira. Já olhou nas gavetas, todas, e ontem fez uma promessa, não lembra mais o que prometeu. Estica o braço, segura a xícara, dá outro gole no café. Levanta-se e caminha até a cozinha. Pratos e copos amontoados sobre a pia. Abre a torneira e deixa a água cair. O barulho que a água faz sobre os pratos lhe dá aos poucos a sensação de que a água jamais deixará de cair, a sensação de que ele será arrastado para fora do apartamento, para o outro lado da porta ou da janela: sua hora chegou? E a imagem da mãe, décadas antes, a dizer que sua hora chegaria, no entanto ele nunca se preparou para ela nem se preocupou dela passar. Fecha a torneira, olha pra os pratos, já não parecem tão ruins. Volta até a sala, escora-se na janela.

Passou dias e noites esperando, esperando, esperando por uma mulher perfeita, pela vida ideal, por talento, jeito, ginga, clarividência, um destino iluminado e bom e que alguém, ao notar-lhe passar, apontasse o dedo e gritasse para o mundo ouvir – Ali vai um grande sujeito, este sim!, mas hoje sabe que não é um grande sujeito, tudo não passava de engodo e embromação, de farsa e carnaval. Fecha os olhos novamente e sente o calor do sol roçar no seu rosto envelhecido. Por um instante imagina-se pegando fogo, que é o próprio fogo e que seu corpo inteiro é uma imensa bola a exalar luz e calor. Escuta as buzinas lá embaixo, escuta as britadeiras, escuta as declarações de amor – ao longe, alguém gritando com ou por outro alguém. Há gente demais no mundo, nas calçadas, nos sinais, nas praças de alimentação. Abre os olhos e olha para suas mãos, os dedos finos e alongados, espalmadas no parapeito: as mãos dele, que sempre se importou com o que seu tio, sua tia, seus primos, um amigo ou amiga da família poderiam falar. Está cansado do que é, de lembrar-se do que foi. Talvez pudesse circular, misturar-se as pessoas nas ruas, encontrar um amigo, alguém. Desconfia, no entanto, de que não há mais ninguém e que se for o apartamento também irá com ele, a sala, o cheiro que a cozinha e o quarto tem. E, além de tudo, ele tem medo – de não agradar, de agradar demais, da morte, da vida, tem medo também de não ser o que queria e de descobrir, tarde demais, que poderia ter sido o que quisesse – voltar no tempo, se pudesse. Por onde andará aquela garota, era Margareth ou Magali? Vontade de saber em que dia está e o que é que falam sobre o seu signo no jornal, mas o jornal é de quarta e as letras são miúdas e ele as olha somente para se sentir igual, ou pelo menos parecido, a todos mais uma vez. Vai até o armário no quarto, o que ainda não vendeu. Abra a gaveta, canetas, papéis amassados, uma agenda de três anos atrás. Vasculha tudo e por fim recoloca no mesmo lugar. Pensa que tudo à sua maneira é uma fuga e que a cada segundo que passa fica mais difícil escapar. Ele que veladamente sempre fora aquela estranha combinação entre homem e bicho, Caim e Abel, a carregar um crescente rancor do tio, da tia, de quem lhe deu sermões e ouvidos. Evita voltar à janela por calcular que o que lhe resta é apenas isso, uma janela e as outras janelas que a vista pode alcançar. Se pudesse voltar. Mas nada volta, tudo segue em direção à derrocada, ao fim. A não ser quando se lembra da casa, a velha casa em que cresceu: a sala, o quadro da Santa Ceia dependurado na entrada, a cozinha com a enorme mesa de mogno, a mãe debruçada sobre o fogão e o pai, de jaleco branco, parado na porta a lhe aconselhar. Lembra ainda da bicicleta de rodas amarelas e de quando dividiu o quarto com o avô. Sempre isso. Pega a xícara de café, dá outro gole e tenta se lembrar o que foi mesmo que prometeu.

Texto publicado originalmente no livro do autor, “O Sangue que Corre nas Veias”, lançado em 2012 pela editora Mondrongo.