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OS RATOS, A ARTE E ILHÉUS

JULIO GOMES
Julio Cezar de Oliveira Gomes é professor e advogado.
Julio Cezar de Oliveira Gomes é professor e advogado.
Toda a cidade viu o interessante e criativo painel que foi pintado junto à ponte Lomanto Junior, na parte que chega a Ilhéus, no muro de pedras da antiga rua das Oficinas (atual Amélia Nunes), ao pé da ladeira do Plano Inclinado.
Naquele muro branco de cal, alguns artistas locais, capitaneados pelo consagrado grafiteiro Rildo Foge, cujos belíssimos trabalhos ilustram e embelezam os mais diversos pontos de nossa cidade, pintaram uma cena com ratos atados e junto a corações vermelhos, dando vazão à criatividade e variedade de temas com que Rildo nos delicia.
Entretanto, surpreendentemente, o referido painel foi apagado por servidores da prefeitura, que cumprindo ordens superiores sepultaram a arte sob grossa camada de cal, sem dela deixar qualquer vestígio.
É certo que é difícil interpretar o que um artista pretende expressar, as vezes até impossível, quando se trata de obras mais abstratas. Entretanto, é possível saber ao menos o que não interpretar a partir de determinados trabalhos artísticos.
Podemos julgar o trabalho de Rildo bonito ou feio. Surpreendente ou recorrente. Original ou piegas. Mas o fato é que a obra nada tinha de ofensivo a ninguém, pois os ratos podem simbolizar desde nossos próprios sentimentos e atos negativos até um lirismo inusitado, por estarem atados a rubros corações.
Painel pintado pelo artista plástico Rildo Foge foi censurado pela prefeitura de Ilhéus.
Painel pintado pelo artista plástico Rildo Foge foi censurado pela prefeitura de Ilhéus.
Não se retratou ali qualquer cena abusiva de sexo, destas que tantas vezes invadem nossas casas pela televisão, sem pedir licença ou desculpas. Também não se devassou a dignidade de ninguém em particular. Da mesma forma, não se ofendeu à liturgia ou aos símbolos de qualquer culto religioso, como por vezes vemos acontecer, com tristeza, nas propagandas, carnavais e em cenas cotidianas.
A cobertura do Painel de Rildo com cal é sinal da mais tacanha intolerância. Mostra que a cidade tem dono e sensor, e que este julga, condena e cumpre a sentença, à revelia do que pensa e deseja o povo que aqui vive.
Mostra que a mentalidade coronelista e patrimonialista, no sentido mais perverso destes termos, ainda se faz presente entre nós, que temos de tolerá-la em pleno Século XXI.
Infelizmente, nossos gestores municipais além de não incentivarem aos artistas de rua, como faz Salvador e todas as cidades do mundo antenadas com a modernidade, ainda os agride com uma censura grosseira e descabida de suas obras, quando deveria dar-lhes material, oferecer-lhes espaços públicos e dar-lhes contrapartida pelo serviço de embelezamento que fazem.
Não quero aqui me estender em críticas aos gestores que determinaram a destruição do painel, porque eles não merecem ser citados para não serem promovidos. Desejo apenas que os artistas de nossa cidade resistam, permaneçam em Ilhéus e continuem produzindo, para tornar mais bela a vida tão árida dos tempos de hoje, pois podemos até perder uma obra, mas não aos artistas que as produzem.
Quanto a nós, que vivemos em Ilhéus, sonho com o dia em que nos libertaremos das influências coronelistas de nosso passado recente, desta mentalidade que ainda nos prende ao atraso e ao subdesenvolvimento, para irmos em direção a um futuro onde atitudes como esta possam ser – estas sim – apagadas sob grossa camada de cal, de nossas vidas e de nossas memórias.