No dia 14 de janeiro de 2019, na lista dos indicados ao 26ª Prêmio Braskem de Teatro figurava a peça ‘O Grande Yorick’, da Trupe Teatro Sem Fim. Este prêmio é, digamos, o Oscar do Teatro baiano.
A indicação traz um sabor a mais, tanto devido à temática, quanto pelo fato de o dramaturgo, Ed Paixão, estar pela segunda vez envolvido em uma produção sul baiana indicada (a primeira foi no elenco de ‘O Santo e a Porca’, da Cia Acordada, em 2017). Para incrementar o campo das possibilidades, lembro que o Ed é do bairro Nossa Senhora da Vitória, periferia da cidade, onde a peça foi montada, utilizando-se de espaços do ACEAI. Então, conterrâneo ilheense, vista a sua camisa: será mais uma chance de torcer por uma peça da cidade, que, apesar de já ter tido representantes em indicações anteriores, nunca levou o prêmio. Ah sim, aproveite e coloque o teatro como opção para fruir em suas noites e/ou fins de semana.
A indicação para a categoria ‘Espetáculo do interior da Bahia’ remonta a uma questão que incomoda muita gente: por que o Prêmio insiste em separar categoricamente as montagens de Salvador e do interior? Não seríamos páreo para concorrer tête-à-tête ao troféu de melhor Espetáculo Adulto, ou falta uma logística para dar conta de assistir aos espetáculos baianos e os permitir concorrer ao prêmio em pé de igualdade? Claro que é muito valida a parceria com o Festival de Teatro do Interior da Bahia, que possibilita a existência dessa categoria. Mas estamos aqui pensando em um degrau a mais que os artistas dos demais territórios possam galgar, experimentando a ampla concorrência no nicho do teatro baiano, já que este ainda é um dos poucos prêmios a que podemos confiar a nossa torcida.Tudo isso é para lembrar que estamos falando de Bahia, macro, plural. A Bahia dos 27 territórios de identidade.
Sigamos.
O espetáculo O Grande Yorick, escrito por Ed Paixão, foi aplaudido de pé em Camaçari, no Teatro Cidade do Saber, na etapa que levava ao Prêmio Braskem. Ali se apresentaram 12 espetáculos, dos quais cinco foram selecionados.
E por que O Grande Yorick emocionou o público em Camaçari? A peça conta a história de Wiliam Chagas, um ator que constantemente luta para não se submeter às convenções da sociedade atual. Bebendo da novela realística Dom Quixote de La Mancha, por vezes, na peça, um personagem dispara um “não dá para viver de sonho”. Um ‘ser ou não ser’ shakesperiano também está presente. O teatro do oprimido, de Augusto Boal, está presente como marca metodológica.
Na história, Wiliam, que não nascera em berço de ouro, agonizou em seus primeiros trabalhos, nos quais vivia com a cabeça a pensar na sonhada faculdade de Teatro. Contada em atos, é uma trama que traz os conflitos internos, familiares e profissionais, buscando equilíbrio entre vida, liberdade e arte versus mercado, religião e poder. É a história de cada um de nós, em algum momento da nossa vida, daí a identificação.
Localizando-se no espaço-tempo do governo Lula – que propiciou fomento às artes cênicas, possibilitando o florescimento de peças como as de Wiliam – seus diversos personagens denunciam racismo institucional, homofobia, machismo, as incoerências entre pregações religiosas e a intolerância expressa, os abusos do Estado. Um Teatro fomentado pelo governo para falar das próprias mazelas permitidas pelo governo: uma franca expressão da Democracia.
Mas, o cenário “real” mudou. A classe artística brasileira se viu cerceada e sob a régua do moralismo. Da classe trabalhadora foram subtraídos direitos e os desdobramentos dessa medida são expostos na montagem, claramente, um ato político de resistência.
“Precisamos escrever as nossas próprias peças, que falem deste século”, diz William quando decide abandonar a faculdade alegando lhe causar engessamento do pensar. Oscilando entre as possibilidades do sonho e o exagero da realidade, ele dá vazão a tudo o que seus personagens permitem, sem, contudo, esquecer do teatro de outrora, com cujos textos ele dialoga. É na libertação daquele que foi seu antigo sonho que ele decide se vestir de suas armas contra a opressão, trazendo à cena Yorick, tal qual Dom Quixote.
Se toda arte é política, O Grande Yorick parece um grito de todas as palavras que precisam ser ditas. Quase sem momentos de silêncio, o espetáculo nos convida a escutar. Em uma passagem, a personagem da sra. Bezerra discursa sobre liberdade, igualdade e fraternidade, enquanto, atrás dela, é projetada a pintura de Eugène Delacroix, “A liberdade guiando o povo”. Foi preciso voltar a 1830 para falar dos assombros atuais.
O fato é que O Grande Yorick nos lembra que onde não há arte, a violência vira espetáculo. Ele elege a arte do Teatro, que sobrevive até à tecnologia 3D, porque é ela mesma a tecnologia de todas as dimensões possíveis, ainda que seja antiga arte.
A fé de Ed Paixão pelo teatro o fez o Dom Quixote da periferia ilheense. Wiliam seria Ed? Talvez sim, em grande parte, pois trilhou um caminho no teatro antes de entrar para o Teatro Popular de Ilhéus; seguiu na arte mesmo depois de sair desse grupo, e passou a apostar em seus próprios textos; lançou seu livro “A resistência Clown na dramaturgia”, onde se registra o texto desta peça; decidiu recentemente, montar a Trupe Teatro Sem Fim, e formou seu time com os apaixonados artistas que compõem o elenco – os atores Geisa Pena e Maurício Lima, e trilha sonora do compositor Cabeça Isidoro, executada por Luan Borba, que também contribui na composição de algumas trilhas – além de sua irmã Larissa Paixão, na polivalência das funções de bastidor. Entre agulhas, linhas e câmeras, elaborou, ele mesmo, o figurino, o roteiro dos vídeos e a produção dos mesmos. Por fim, ensaiou dia após dia, durante cinco meses, até entrar em cena. E os recursos? Próprio bolso do diretor, um pequeno edital da Secretaria Municipal de Cultura e uma vaquinha virtual. Com o Prêmio Braskem, é possível que a montagem leve R$ 30 mil.
Depois desse caminho, o diretor se tornou o cavaleiro andante em busca de arte, de Teatro, de justiça e de promover a reflexão sobre a nossa existência. Assim, ele encontra na amargura da lucidez, o caminho da loucura. Mas quem é mesmo louco? Quem se depara com toda essa realidade, vocifera e vai à luta? Ou quem se deixa levar, inerte, pela maré desses tempos?