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ESSÊNCIA INTERIOR

RODRIGO MELO

Rodrigo melo é Catitu, pai de Amaralina, filho de Ilhéus, escritor e fera no pingue-pongue.
Rodrigo Melo é Catitu, pai de Amaralina, filho de Ilhéus, escritor e fera no pingue-pongue.

Volta e meia todo mundo desliza, vacila, troca os pés pelas mãos. Todo mundo às vezes se confunde, entende o recado errado e viaja na maionese, assemelhando-se a um trapalhão, e depois fica parecendo um avestruz à procura de um buraco para se esconder. A depender do humor, do horóscopo, do clima ou de outra atenuante, todo mundo derrapa. Comigo, no entanto, isso parece acontecer com mais frequência. Acontece bastante, aliás. Talvez eu tenha caído do berço, pode ser isso.

Na sexta passada, quando chegava à rua em que moro, reparei que o vizinho, que é professor de ioga e escuta Kitaro até umas horas, jogava brita e a espalhava sobre a rua, que é uma verdadeira superfície lunar. Atitude bacana a dele, já que a prefeitura não fez nem faz a sua parte e no dia da vaquinha para comprar a brita eu não pude participar. Que Deus me perdoe por isso e por tentar entrar em casa sem cumprimenta-lo. Mas não consegui. Tão logo coloquei a chave na fechadura, ele gritou, todo sorridente:

-E aí, vizinho, trabalhando muito?

Acenei e também sorri, a pensar: que merda de pergunta é essa? Sei que hoje em dia tem uma turma bastante fiscalizadora, uma porção de gente a dizer como se portar em tal situação, como segurar a porra do garfo, cagar ou ligar a televisão, dentre outras coisas. Nunca dei bola para eles e, imaginava, eles também nunca deram muita bola para mim. Mas ali estava ele, o meu vizinho, cheio de dentes e com uma pá em uma das mãos, suado pra cacete e munido de indiretas.

-Estou trabalhando sim, chapa – falei, me aproximando e apertando forte a sua mão, olhando no fundo dos seus olhos transcendentais. – Trabalho todos os dias. Vendo casas e terrenos.

Afora isso, às quatro da matina, quando muito filho da puta está dormindo e babando o travesseiro, estou finalizando um parágrafo ou a página de um romance. Se tudo correr como planejado, daqui a um ano vai ter gente acampando aqui na nossa porta. Se não vierem, começo a assaltar banco.

-Jóia – ele respondeu, sem graça -, não sabia que escrevia.

-Ah, escrevo sim. Não toco no assunto para não parecer gabola, mas é um trabalho mais puxado que cruzar as pernas e ficar murmurando uns mantrinhas por aí.

Então eu dei-lhe as costas e finalmente entrei em casa.

Acontece que fiquei pensando no assunto. Alguma coisa parecia fora do lugar. Aquele coroa sempre fora educado, de poucas palavras. Me oferecia abacate do pé que tinha em seu quintal. Quanto mais rememorava a coisa, mais ela clareava e vinha aquele frio chato na barriga, o frio do arrependimento. Lembrei de vê-lo com a pá na mão, de fingir que estava procurando algo no carro, nossos olhos rapidamente se cruzando e tão logo enfiei a chave na fechadura, a voz dele lá atrás:

-E aí, vizinho, atrapalhando muito? 

Eu era um homem cruel, descobria de repente e da pior forma, eu me transformara num bruto e, por isso mesmo, num homem só. Eu era um homem pouco evoluído espiritualmente. Muito mais matéria do que espírito. Nada de leveza nem de compreensão. Eu não me alongava, não buscava minha essência interior. Eu curtia heavy metal. 

Desci as escadas, atravessei a rua e apertei a buzina de sua casa. Pediria desculpas, um tempo para acertar a minha parte na vaquinha, diria ainda que eu não escrevia porcaria nenhuma que fosse levada em conta, tudo se resumindo a umas merdinhas que nem eram pagas pelo dono do jornal. Mas ninguém apareceu. As luzes estavam apagadas por cima do muro e mesmo quando gritei nada mudou. Peguei então uma pá que havia na minha garagem e voltei para a rua e comecei a espalhar as britas que ainda estavam amontoadas num canto. Eram muitas. Mas eu nem liguei.