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UMAS LUZES PISCANDO

RODRIGO MELO
Rodrigo Melo é Catitu, pai de Amaralina, filho de Ilhéus, escritor e fera no pingue-pongue.
Rodrigo Melo é Catitu, pai de Amaralina, filho de Ilhéus, escritor e fera no pingue-pongue.

Conheci Ilma numa sala de bate-papo da internet. Dias depois, peguei emprestado o carro de um primo e segui rumo à Cidade Baixa, mais precisamente para a Rua São José, casa 263, perto da Igreja do Bonfim.

Toquei a campainha e, enquanto esperava, pensei: aí vem a morena sensacional que vi nas fotos, a recompensa pelas madrugadas iluminado apenas pela tela do computador, morrendo de sono mas com uma vontade imensa, morrendo de sono mas aceso por dentro, sonhando acordado, com ela, com nós, com o futuro, com uma cama redonda e macia em algum lugar. Ilma tinha seios fartos. Viver é fácil, eu imaginava. Aí vem ela.

A porta foi aberta, um velho apareceu.

– Boa noite, Ilma está?

– Você que é o Rodriguez?

– Sou.

– Eu sou o pai da Ilma. Pode entrar.

Ele virou-se e eu fui atrás. Passamos por um corredor, depois guinamos para a esquerda, entramos por outro corredor e, por fim, chegamos a uma sala. Havia uma senhora sentada no sofá, assistindo TV. Era a mãe. Ilma desceria logo, acabava de se arrumar. Sentei-me numa das poltronas e acompanhamos o Jornal Nacional. Houvera um derramamento de óleo em algum lugar – peixes e gaivotas metidos num mar negro demais. Às vezes comentávamos as reportagens. Tudo muito medido, formal. Não me sentia incomodado, de qualquer maneira. Eu me sentia, claro, como um homem escrevendo o seu próprio destino. O vento entrava pela janela e era bom estar ali.

Então a mãe falou:

– Quer dizer que o senhor é dramaturgo.

– Tento ser – respondi, sorrindo meio sem graça.

– Pelo que soube, é talentosíssimo.

Mandara alguns esboços para Ilma, tudo cópia de um pessoal que, imaginei, ela nunca viria a conhecer.

– Ilma foi generosa.

– Eu adoro teatro – ela disse. Quando fará uma montagem por aqui? Quais são suas influências?

Será que a velha estava me testando? Cara de boba, não tinha. Talvez fosse uma das fãs do Gerald Thomas. Eu já me preparava para perguntar sobre a localização de sanitário, quando escutei os saltos na escada. Virei-me e lá estava Ilma metida num vestido branco com bolinhas azuis. Analisando-a dali, de fato lembrava a mulher que eu vira nas fotos, mas se cruzasse comigo num elevador, eu provavelmente não a cumprimentaria. O tempo passara e o que deixava pra mim naquele instante era apenas uma mulher encorpada demais, com uns cabelos armados para cima, num estilo antigo, e um rosto desgastado e sofrido.

– Amor… – ela disse.

Caminhou na minha direção e me abraçou, o perfume rescendendo a elevador de serviço, em seguida me beijou.

– Vamos? – perguntei, quando nos separamos.

A verdade era que eu havia caído numa armadilha. Não deixava de ser frustrante e desanimador. Já disseram, no entanto, que todo homem deve tirar uma lição de tudo o que não lhe traz a completa felicidade. E era o que eu fazia, ou tentava fazer, alguns minutos depois, sentado numa mesa do barzinho que ela indicou: vista bonita, o mar, a Ilha de Itaparica e umas luzes lá longe, piscando. Pedi vinho. Disse pro garçom, no balcão, que um nacional mesmo servia. Enchi a taça dela, enchi a minha, brindamos e eu comecei a dar grandes goles olhando ao redor. O vinho não era fraco. A cada gole, eu me sentia melhor, o barzinho ficava melhor e Ilma também melhorava. Curioso e interessante aquilo. Ela estava realmente bem fofinha, mais madura, só que, eu notava, ainda possuía atrativos: os seios estavam mais fartos que nas fotos, a boca mais carnuda e a bunda, maior. Por debaixo da mesa, ela ia me acariciando, enquanto pedia uma calabresa com farofa pro garçom.

Uma hora depois e o motel.

Joguei-me por sobre o colchão e fiquei a observá-la na frente da cama, de pé, tirando o vestido e mostrando-me uma cinta-liga vermelha cheia de penduricalhos – as carnes apertadas contra a lycra, mas sob a fraca luz do quarto eram carnes sensuais. A vida parecia fácil outra vez. Tínhamos o nosso combustível, vinho nacional e as promessas na frente do computador. Lembro dela fazendo biquinho, alisando o pescoço e olhando pra mim.

E, inevitavelmente, nos amamos por horas e horas e horas, até que não agüentei mais e dormi.

Quando acordei, no meio da madrugada, Ilma estava debruçada sobre a geladeira, em busca, provavelmente, do Chokito que eu havia comido. Uma luz mais forte substituíra a anterior e eu pude notar então as suas estrias e celulites apertadas contra a cinta-liga pequena demais. Uma cena feia e de mal gosto. Foi nesse momento que voltei a enxergar algo de errado em toda aquela estória. Tive a consciência, na verdade, de que eu não deveria estar ali. Era isso. O encanto acabara e eu descobria que Ilma era má e me enganara de propósito quando enviou fotos de anos atrás. Ela brincara comigo e com meus sentimentos, enquanto eu precisava apenas de uma mulher sincera, uma mulher que não abusasse de subterfúgios maldosos, que não me considerasse um homem bobo que caía em todas as armações.

Por um segundo, lembrei da velha, sentada no sofá, e das gaivotas metidas num lamaçal sem fim.

Levantei-me e falei para irmos embora, dizendo que teria que devolver o carro.

– Você ficou tão calado de uma hora pra outra… – ela disse, quando desceu do carro, na frente da sua casa.

– Impressão sua.

– Será?

– Com certeza.

– Quer entrar um pouquinho?

– Não posso, meu primo tá esperando.

– Ai, amor, liga pra ele lá do meu quarto. Aposto que vai entender.

– Ilma, minha querida, você não me conhece direito, mas eu sou um homem que honra os compromissos. Faço questão de honrar. Nunca o enganaria.

– Olha, então deixa eu dizer…

Pode ter parecido loucura, mas a verdade é que eu não escutei o que Ilma disse. Não queria. O que fiz quando ela começou a falar foi pisar fundo no acelerador e o carro saiu cantando os pneus nos paralelepípedos da Rua São José, lá perto da Igreja do Bomfim. Tudo estará bem se eu conseguir escapar a tempo, pensava comigo. Tudo voltará ao normal se eu chegar até a outra esquina e alcançar a avenida principal. A existência voltará a ser simples e pura se eu não parar mais. E eu não parei. Continuei seguindo em frente, veloz, vencendo o asfalto negro da madrugada e indo para o outro lado da cidade, em busca, quem sabe, da trilha certa para achar o meu verdadeiro amor.

Ilma, por sua vez, permaneceu no mesmo lugar em que a deixei: as mãos apoiadas na cintura, os cabelos amassados e o vestido de bolinhas azuis ficando a cada instante menores pelo espelho retrovisor.