ILHÉUS 24H :: Porque a notícia não para. Porque a notícia não para

A HISTÓRIA DO CRISTO DE ILHÉUS

Gerson Marques é produtor de Cacau e Chocolate e Diretor Presidente da Associação dos Produtores de Chocolates de Origem do Sul da Bahia.

Aos primeiros raios do dia a notícia varreu a cidade como um terremoto, em sua casa o prefeito foi acordado aos gritos, havia uma frenesi generalizada e uma histeria coletiva por todos os cantos, o Bispo, muito nervoso correu para igreja acompanhado por um grupo de padres e devotos, todos se perguntavam como isso tinha acontecido, por que? Seria coisa de Deus? Ou daquele?

Para o prefeito, não havia dúvidas, era coisa da oposição, aqueles comunistas ateus, materialistas dos diabos interessados em combater seu governo, com golpes baixos e sabotagem.

Em pouco tempo uma multidão já se formava no local, as pessoas vinham de todos os lugares e se dirigiam em hordas para a ponta do Unhão (conhecida hoje como praia do Cristo), as ruas e a praia estavam apinhadas de gente assombradas com a notícia e completamente incrédulas com o que viam, assim começou o dia vinte e sete de junho de mil novecentos e quarenta e dois, em Ilhéus, véspera do aniversário da cidade.

Nas proximidades do local, um conhecido estivador morador do Outeiro, dos primeiros a ver o ocorrido, comentava em voz alta que nos últimos dias coisas estranhas estavam acontecendo em Ilhéus, para ele,tudo era sinal do fim dos tempos, disse lembrando o caso do fantasma alado que fora visto por muitos no povoado do Banco da Vitória, voando a noite entre o cemitério e a fazenda dos suíços, fazia um barulho tenebroso, disse o estivador,  soltando um grunhido macabro que assustou os presentes, lembrou também do padre holandês, que morreu afogado no Rio do Braço e dias depois foi visto por muitos rezando uma missa na capela da fazenda dos Catalão, e agora isso aqui uma coisa inexplicável e assustadora, era sem dúvida um sinal do fim dos tempos, insistiu o estivador.

Perto dali, em uma roda de fazendeiros de cacau e comerciantes o líder oposicionista Nelson Adami de Carvalho, apresentava sua tese para o acontecimento, baseado em uma teoria conspiratória, dizendo que o ocorrido fora sem dúvida uma invenção do próprio prefeito, só para caluniar a oposição, no que era apoiado por uns e refutado por outros.

O fato, porém começa um ano antes no verão de 1941, segundo notícias vinculadas no vespertino Diário da Tarde, ao chegar de uma viagem a capital da República, o prefeito Alfredo Pessoa, alegou que durante sua estadia no Rio de Janeiro, teve um sonho em que Deus “teria aparecido em pessoa” como disse o prefeito, a sua frente pedindo que ele construísse uma estátua do Cristo Redentor em Ilhéus, que deveria ficar localizada no cume do Morro de Pernambuco, de braços abertos, saudando navios, veleiros, lanchas, brigueis e todo tipo de embarcações com seus marinheiros e passageiros que chegavam a cidade pelo mar.

Na época, a oposição através de editoriais e notícias no jornal oposicionista A Gazeta de Ilhéus, acusava o alcaide de estar fazendo proselitismo, transformando Deus em seu cabo eleitoral, com vistas as eleições vindouras, a obra do Cristo seria nada mais que uma imitação barata do que ele tinha visto no Rio de Janeiro, o famoso Redentor da capital federal, fazer um desse em Ilhéus era faraônico e dispendioso para uma cidade em que a maioria das ruas eram de terra e muita lama em tempos de chuva.

Ciente das críticas o prefeito fez uma aliança com o Bispo D. Miguel Proença, que em troca de uma boa ajuda para construção da Catedral, apoiou a ideia divina, que, segundo o Bispo “teria o próprio Deus solicitado ao prefeito”, irritando profundamente a oposição.

Em abril daquele ano, uma missa campal no cume do Morro de Pernambuco, marcou o inicio da obra,  houve a benzedura do local, discursos políticos, fogos de artifícios e pedra fundamental, o prefeito não perdeu a oportunidade de demonstrar sua intimidade com Deus, dizendo a todos que falava com o senhor diariamente e que Deus teria dito a ele de seu apreço por Ilhéus, disse o prefeito que estava ali não para cumprir uma promessa de campanha, mas uma promessa divina feita ao maior de todos os eleitores, o próprio, que havia aparecido a ele “em pessoa” para pedir que ali fosse feita uma estátua em homenagem ao seu filho crucificado.

Passado um ano do início da obra, que se mostrou enormemente penosa e cara, dada às dificuldades naturais em transpor para o outro lado da baia pedras, areia, cimento, madeira, ferro e em fim todo material necessário a empreitada,  foi anunciada a data da inauguração para vinte e oito de junho de quarenta e dois, o principal acontecimento do aniversário da cidade.

Uma longa lista de convidados foi elaborada com antecedência, entre eles o Cardeal D. Murilo Costa, Arcebispo Primaz do Brasil, que confirmou a presença na condição de representante do Papa, e o governador do Estado, Juracy Peixoto que, segundo o prefeito passou um telegrama confirmatório de sua ilustre presença, nos dias que antecederam a inauguração o prefeito fez seu governo trabalhar a todo vapor, convidou para abrilhantar o evento filarmônicas de doze cidades do Estado, o Clube Social frequentado pela elite ilheense divulgou a realização de um grande baile de gala, com trajes a rigor, terno para os homens e vestidos longos para mulheres, diversas famílias tradicionais organizaram almoços e jantares para parentes, amigos e importantes autoridades esperadas para os festejos cívico religioso, arvores foram podadas e pintadas de cal, ruas varridas e mato arrancado, as tradicionais bandeirolas já enfeitavam as ruas do centro uma semana antes, os comerciantes animados sentiram o aumento súbito nas vendas de tecidos, sapatos, chapéus, joias e todos apetrechos de maquiagens, perfumaria e acessórios. Para desespero da oposição a cidade só falava na inauguração da estátua do redentor, os mais exagerado se eufóricos bairristas afirmavam que ela era ainda mais bonita e maior que a da capital.

No entanto, tudo que foi programado estava em suspenso com a noticia que abalou a cidade naquela manhã.

Era madrugada quando o pescador Olegário Da’Silva, zarpou da Ponta da Pedra com seu pequeno veleiro de pesca na direção da barra, rumo a alto mar, fazia isso todos os dias, nos últimos meses se acostumou a ver a obra do Cristo, em todas suas etapas, o início quando foi feito o gigantesco pedestal de pedras, e a cada dia a estátua de cimento e ferro sendo erguida lentamente e ganhando forma, podia ver as linhas retas das vestes sagradas, a corda atada a cintura do salvador denotando a simplicidade de suas vestimentas, o tórax robusto, e tempos depois os braços longos e generosos abertos para o mar, nos últimos meses, viu os operários moldando a cabeça com longa cabeleira, a barba e o rosto sereno de olhar iluminado e radiante do filho de Deus, Olegário gostava da visão quando passava na boca da barra, fazia várias vezes o sinal da cruz, tanto na saída para o mar, quanto na volta da pescaria agradecendo ao Cristo, agora finalizado, a  fartura em suas redes no generoso mar dos Ilhéus, naquela manhã tendo navegado a longa curva da baia empurrado pelas últimas baforadas do terral, já podia ver a barra com suas ondas douradas refletindo a luz do sol que começava a nascer, pouco depois, como fazia todos dias aproximou a mão do rosto para se benzer, olhou para o cume do Morro de Pernambuco onde na véspera viu a estátua sendo pintada de branco em retoques finais, e para sua surpresa não à viu onde esperava, pensou que o barco estava no lugar errado, talvez mais pra dentro da baia, logo, constatou que não, ele conhecia aquelas águas como suas próprias mãos, voltou a olhar para o cume do morro agora a estibordo, onde com certeza estaria gloriosamente o redentor de braços abertos, e nada! Passou as mãos molhadas no rosto, sentiu o sal da água nos lábios, firmou mais uma vez o olhar em busca da imagem e constatou que realmente não a enxergava, pensou tratar-se de uma nuvem cobrindo o Morro, mas notou um céu azulado escuro quase sem nuvens, não podia ser, onde foi parar o Cristo enorme que ainda ontem quando voltou do mar estava ali? Muitas coisas passaram pela cabeça de Olegário naquele momento, talvez estivesse endoidecendo, meio amalucado, seria aquelas cachaças no bar de Zefá todas as noites, ou cansaço de anos da labuta interminável, lembrou da mãe dizendo que muito sol na cabeça deixava o juízo mole, e seguiu variando o pensamento sem nada entender, quem sabe seria um capricho do próprio Cristo, um senhor tão poderoso, resolveu sair por aí, cansou da posição de braços abertos, estaria provavelmente  deitado ali na grama recém aparada junto aos coqueiros do Morro… de repente voltou a si de olhos muito arregalados com o barco já a deriva, olhando em volta, encontrou por fim a magnífica estátua, não para seu alívio, mas sim para piorar sua confusão mental, o Cristo tinha mudado de lado, desceu do Morro, atravessou o canal da baia e se postou na ponta do Unhão, do mesmo jeito que fora erguida, em suas vestes longas, a corda na cintura, os braços generosos abertos ao mar e aqueles cabelos longos e a barba no rosto sereno e iluminado, tudo ali só que em outro lugar. Olegário sentiu o chão sumir a seus pés, o mar se abriu e o dia escureceu, imaginou-se morto, louco, visionário, cego, pecador tudo ao mesmo tempo e nem assim conseguia entender. Como o Cristo Redentor de cimento e ferro havia mudado de lugar de um dia para outro, ficou ainda mais perplexo quando notou que até o enorme pedestal de pedras também se mudou com o Cristo, assim, o pescador Olegário foi o primeiro a constatar o ocorrido, mas não o único, Manoel Firmino, estivador e morador do Outeiro também se assombrou com o que viu logo cedo lá de cima da janela de sua casa, debruçada do alto da colina sobre a entrada da barra, dali mesmo assistiu dia após dia a construção da estátua, assim como Olegário, viu a construção do pedestal e de cada etapa daquela enorme imagem que se impôs na paisagem, mas que agora simplesmente não estava lá, estava cá, ao pé de seu Outeiro na ponta do Unhão, foi ele que pôs a boca no trombone e soltou a notícia bomba acordando toda cidade.

A multidão que agora já reunia quase todos os moradores da pacata Ilhéus da década de quarenta, chegava ao Unhão pela rua Dois de Julho ou pela avenida Copacabana (antigo nome da Soares Lopes), testemunhavam assombrados o ocorrido, no meio do povo não tardou um conhecido carola, coroinha, sacristão e quase padre, Juca Galdino gritar em plenos pulmões.– É um Milagre! no que foi acompanhado pelos milhares de devotos e também pelos infiéis na mesma cantilena, Milagre! Milagre! Milagre! um milagre acabava de acontecer ali, de imediato um fervor religioso tomou conta de todos que começaram a rezar, muitos prostrados de joelhos ao chão e em lágrimas.

Na prefeitura, o alcaide  Alfredo Pessoa bradava aos montes os impropérios acusatórios aos opositores, segundo ele, acomunados com o diabo, para desmoraliza-lo perante os eleitores e a Deus, inconformado, mandou cancelar a inauguração e ordenou que a estátua teria que voltar ao alto do Morro de Pernambuco, custasse o que custasse. O Bispo, porém desta vez não apoiou o prefeito, disse que a estátua tinha que ficar onde agora estava, foi realmente um milagre, o próprio Cristo escolherá o local, o prefeito possesso de raiva não aceitou a tese do Bispo, e de imediato o acusou de se vender a oposição, já estes por sua vez, sentindo os novos ares aderiu subitamente a opinião popular e adotou o discurso do milagre, acusando o prefeito de querer desrespeitar a vontade de Deus. O caos político se instalou na cidade, as vésperas do aniversário e da pomposa inauguração, o prefeito não abria mão de mandar desmanchar a estátua e reergue-la no alto do Morro de Pernambuco, onde Deus em pessoa teria pedido a ele, repetiu pela milésima vez a história do sonho.

Inconformados com a decisão de destruir a estátua, os fervorosos devotos se revoltaram e resolveram proteger a estátua da sanha demolidora do prefeito, a oposição em comitiva foi ao Bispo fazer um apelo por sua intervenção, que,evocando a condição de autoridade maior nos assuntos do cristianismo e agora apoiado pela oposição, manteve a inauguração para o dia seguinte com todas as pompas da programação já preparada, para alegria geral da população.

Assim, no dia vinte e oito de julho de 1942 com grande festa, pompas e circunstâncias toda população de Ilhéus e região, na presença de autoridades convidadas, do Bispo D. Miguel Proença, acompanhado do Governador e do Cardeal Primaz, e na presença dos políticos da oposição inaugurou a estátua do Cristo Redentor de Ilhéus na Ponta do Unhão, hoje conhecida como Praia do Cristo, onde ainda está.

O prefeito Alfredo Pessoa, tomado de raiva e profunda crise de dor de cotovelo, não compareceu ao evento, conta-se que dias depois foi amarrado em camisa de força quando sozinho tentava em posse de uma marreta destruir a estátua,  levado ao internato no manicômio Juliano Moreira em Salvador nunca mais voltou a cidade.